Descrição de chapéu Governo Trump

Recuo dos EUA cria deixa para reformar ONU

Para analistas, reposicionamento americano na entidade, que se reúne nesta semana, possibilita ascensão de outros

O presidente dos EUA, Donald Trump, durante comício em Las Vegas - Evan Vucci - 20.set.18/Associated Press
Danielle Brant
Nova York

​Quando Donald Trump estreou no maior evento anual da ONU, a abertura da Assembleia Geral, no ano passado, a mensagem foi clara: América primeiro (lema que o levou à Casa Branca) e ameaças aos inimigos, citados por apelidos que acabaram colando (vide Homem-Foguete para Kim Jong-un).

Em 2018, o presidente dos EUA que retorna ao púlpito da ONU em Nova York já tem os contornos de sua política externa mais nítidos e sua posição em relação a alguns dos temas mais caros ao organismo multilateral —direitos humanos, crises migratórias e preservação da diversidade cultural— definida.

No caso, retirando-se do Conselho de Direitos Humanos, ficando de fora do pacto global sobre migração e abandonando a Unesco, agência cultural da ONU. Logo no começo do mandato, o republicano já havia deixado o Acordo de Paris sobre o clima.

Na próxima terça (25), quando tomar o lugar no púlpito após o brasileiro Michel Temer, Trump deve reforçar a defesa da prevalência americana —soberania foi o primeiro item citado pela embaixadora dos EUA na ONU, Nikki Haley, ao detalhar a agenda.

Também vai dedicar palavras aos principais adversários do país, como Coreia do Norte e Irã.

É uma abordagem distinta daquela do democrata Barack Obama, criticado por ser excessivamente conciliador. E não deixa de evidenciar a posição de Trump em relação ao organismo, frequentemente descrito por ele como anacrônico e portanto contornável quando lhe convém.

A avaliação é de Miles Kahler, especialista em governança global do Council on Foreign Relations, centro de estudos de política externa. “É uma abordagem transacional, uma visão estreita do trabalho da ONU”, afirma.

“Nikki Haley tem uma influência no sentido de manter o apoio dos EUA à ONU quando serve aos interesses americanos. Há interesse em sanções a Coreia do Norte e Irã”, diz. “Mas isso não impediu os EUA de reduzirem o financiamento a refugiados e de não priorizarem a manutenção de paz em determinadas regiões.”

No final de agosto, o governo americano cortou praticamente toda a verba para a agência da ONU de apoio aos refugiados palestinos.

Para Kahler, a decisão dos EUA de abandonarem o protagonismo abre espaço para países como Canadá e Alemanha. “É possível forjar uma coalizão para impulsionar outros temas. A pergunta é se esses países conseguem”, avalia. Na agência para os palestinos, poderiam ser canalizados  recursos de outras fontes. “Mas a contribuição dos EUA é substancial [US$ 300 milhões]. Os outros países vão querer preencher o vazio?”

James Cockayne, diretor do centro de pesquisas políticas da Universidade das Nações Unidas, também vê oportunidade para outros líderes emergirem no cenário global.

“A nova ordem é diferente, uma liderança compartilhada por vários países, fragmentada”, diz.

O espaço deixado pelos americanos abre a possibilidade de os insatisfeitos com o atual formato da ONU tentarem mudar as regras. 

O Brasil historicamente se empenha nessa missão, deixada de lado pelos governos de Dilma Rousseff e Temer. 

No G4, que inclui Alemanha, Índia e Japão, o país debate a reforma do Conselho de Segurança da ONU para expandir o número de assentos fixos —aqueles com poder de veto, hoje reservado a EUA, Rússia, Reino Unido, França e China— a fim de refletir a nova ordem, e não o Pós-Guerra.

Quando Trump reconheceu Jerusalém como capital do aliado Israel, os outros 14 países do CS (além dos cinco membros fixos há dez rotativos, sem veto) emitiram uma resolução contrária. Haley usou o veto dos EUA e a bloqueou.

“Os que não estão satisfeitos com o status quo, com as regras escritas em outro período, agora podem mudar a forma como elas funcionam. Se as coisas vão ser como nos últimos 60 anos, é uma boa pergunta”, afirma Cockayne.

Ele vê espaço para que o Brasil abocanhe parte desse protagonismo, sobretudo em discussões nas quais o país é referência, como no combate ao trabalho análogo ao escravo.

“A experiência do Brasil na última década em usar todas as ferramentas para enfrentar o problema é instrutiva para todos os países no mundo.”

Para a própria ONU, o afastamento dos EUA tem um lado positivo, defende Kahler. “A ONU pode chamar a atenção para operações que não recebem ênfase, como construção da paz, e para as muitas agências que fazem bons trabalhos no mundo”, afirma.

“A visão que as pessoas têm da ONU é que ela não faz muito, o que é incorreto. Ela precisa do apoio de outros países e da sociedade ”, diz o especialista do CFR.

Por outro lado, Cockayne acha um erro considerar a inflexão americana como um isolamento. “O que acontece é um rearranjo em relação a temas como direitos humanos, mudando a ênfase”, diz.

Ele lembra que diplomatas são treinados para navegar por mudanças de governo.

“Embora os ajustes do presidente à política externa americana pareçam abruptos e imprevisíveis, há um reconhecimento da população de que os EUA têm desafios políticos que precisam ser enfrentados se quiserem manter o poder global”, afirma. Entre eles, estão fragilidades na economia doméstica, desigualdade e comércio global. 

O que esperar de Trump na Assembleia Geral da ONU 

Coreia do Norte
Após chamar o ditador Kim Jong-un de Homem-Foguete em 2017, Coreia do Norte e EUA ensaiaram uma aproximação. Trump e o norte-coreano se encontraram em junho e acertaram a desnuclearização do país asiático. Pouco se avançou. Trump deve reforçar a necessidade de supervisão do processo em seu discurso

Irã
Depois de deixar o acordo nuclear, o governo americano retomou as sanções contra o regime de Teerã. Ao detalhar a agenda de Trump, a embaixadora Nikki Haley afirmou que o Irã "parece ter os dedos em todos os pontos perigosos do mundo"

Síria
Rússia e EUA divergem sobre o conflito sírio. O tema, se abordado, pode complicar os planos do presidente russo, Vladimir Putin, de comparecer aos EUA neste ano, em meio à investigação sobre a interferência de Moscou nas eleições americanas de 2016


Como foi em 2017?

Defesa da soberania
"O primeiro dever de nosso governo é com seu próprio povo: atender às suas necessidades, garantir sua segurança, preservar seus direitos e defender seus valores"

Críticas à Coreia do Norte
"Ninguém mostrou mais desprezo por outros países e pelo bem-estar de sua própria população que o depravado regime da Coreia do Norte, responsável por matar de fome milhões de norte-coreanos"

Irã
"O governo iraniano oculta uma ditadura corrupta por trás de uma falsa fachada de democracia"

Imigração
"Aprendemos que, no longo prazo, a migração descontrolada é profundamente injusta tanto para os países que enviam quanto para os que recebem migrantes"

Venezuela
"A ditadura socialista de Nicolás Maduro impôs sofrimento e dor terríveis ao bom povo desse país. Esse regime corrupto destruiu uma nação próspera, impondo a ela uma ideologia falida"

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