Reportagem da BBC elucida crime polêmico em Camarões

Após negar envolvimento militar, governo abre inquérito sob pressão popular

Homem armado coloca venda em mulher em área descampada de savana
Trecho de vídeo que se popularizou em Camarões ao mostrar assassinato de mulheres e crianças; reportagem da BBC usou satélite e imagens em rede para revelar autores - Divulgação
São Paulo

Uma reportagem investigativa do braço africano da rede britânica BBC comprovou, após mais de dois anos, a participação de soldados do Exército de Camarões no assassinato de duas mulheres e duas crianças pequenas. 

Os crimes foram registrados em um vídeo com cerca de três minutos que se tornou viral nas redes sociais em julho deste ano, detonando uma troca de acusações sobre os autores dos assassinatos —os quatro foram mortos com 22 disparos.

As imagens mostram um grupo de homens armados, vestindo uniformes camuflados, arrastando, vendando e logo depois atirando nas vítimas em uma estrada rural.

Uma das crianças, que aparenta ter menos de dois anos, está presa às costas de uma das mulheres com tecido, num arranjo para carregar bebês.

Inicialmente, o ministro das comunicações de Camarões, Issa Tchiroma Bakary, negou a participação do Exército do país, afirmando que o vídeo teria sido filmado no Mali.

O governo também argumentava que as armas e uniformes não eram condizentes com aquelas usadas pelos soldados na parte norte do país, onde o Exército camaronês combate o grupo terrorista Boko Haram, que atua principalmente na vizinha Nigéria. 

“O vídeo que está circulando é nada mais que uma desafortunada tentativa de distorcer os fatos e envenenar o público”, disse à época Bakary.

A reportagem da BBC, no entanto, desmente as alegações do governo com análise de imagens de satélite, detalhes do próprio vídeo —incluindo sombras e tipo de armamento—, publicações antigas em redes sociais e informações de fontes confidenciais.

O primeiro passo da equipe jornalística foi identificar o local onde os assassinatos ocorreram. Com informações de uma fonte camaronesa cruzadas com imagens de satélite, os jornalistas acharam a coincidência entre a imagem e uma cadeia de montanhas, o que confirma que o vídeo foi feito no norte do país.

Com as imagens disponíveis em sites como Google e Digital Globe a reportagem chegou à localização exata: uma cidade chamada Zelevet, perto da fronteira com a Nigéria.

Elas também ajudaram a determinar quando os crimes teriam ocorrido. Comparando elementos da paisagem do vídeo e imagens disponíveis na internet da região em diferentes épocas, estimaram, com base nas construções feitas ao longo dos anos, que a gravação data do início de 2015.

Em outra análise, com o ângulo da sombra de um dos soldados e a posição do sol, a equipe da BBC chegou ainda mais perto de uma data exata, entre os dias 20 de março e 5 de abril de 2015.

A reportagem também conseguiu identificar os três atiradores que aparecem no vídeo (Cyrique Bityala, Barnabas Donossou e Tsanga), unindo informações de fontes com uma lista divulgada pelo próprio governo após abrir inquérito em agosto de 2018 e cruzá-las com fotos em redes sociais.

Em agosto, o governo de Camarões divulgou um comunicado com o nome de sete militares do país detidos pelo crime, negando sua versão anterior. Segundo o ministro das comunicações, os acusados “terão julgamento justo” e têm presunção de inocência. 

O presidente de Camarões, Paul Biya, 85, no cargo há 35 anos, tenta o sétimo mandato nas eleições presidenciais previstas para 7 de outubro.

Além de enfrentar o Boko Haram no território camaronês, o país de 23,4 milhões de pessoas convive com disputas com grupos separatistas nas regiões noroeste e sudoeste.

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