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Financial Times Governo Trump

Apesar de desaparecimento de jornalista, Trump não tem como romper com Riad

Americanos dependem dos sauditas no Oriente Médio, mas podem aprender a não confiar em príncipes

Gideon Rachman
Financial Times

O desaparecimento (e provável morte) de Jamal Khashoggi é uma tragédia e um mistério. Também é um sério golpe à política americana no Oriente Médio.

Na medida em que o governo do presidente americano, Donald Trump, tinha uma estratégia para a região, ela se concentrava na Arábia Saudita e na figura instável do príncipe Mohammed bin Salman —ou MBS, como é conhecido.

O príncipe herdeiro saudita deveria ser o homem que formaria uma aliança contra o Irã, faria a paz com Israel, enfrentaria o meio religioso em seu país e ajudaria a esmagar o Estado Islâmico em toda parte. Segundo seu próprio relato, ele também liberalizaria a sociedade saudita e transformaria a economia —apresentando nesse processo negócios suculentos para as empresas americanas.

A centralidade da Arábia Saudita para a visão de mundo de Trump foi salientada quando o presidente fez sua primeira visita oficial no exterior a Riad, a capital saudita. MBS rapidamente formou um relacionamento estreito com Jared Kushner, o genro de Trump. Ambos estão na casa dos 30 anos e juntos tramaram a reformulação da geopolítica do Oriente Médio.

A ofensiva de charme de MBS foi muito além da família Trump. O príncipe real cortejou famosos jornalistas ocidentais, enviou textos recheados para pessoas influentes em Washington. Em uma viagem aos EUA, misturou-se à realeza americana —Bill Gates, Mark Zuckerberg e Rupert Murdoch.

No entanto, até parte do fã-clube do príncipe tinha opiniões reservadas. Como disse um observador ocidental, "Minha pergunta sempre foi onde situá-lo no espectro entre Lee Kuan Yew [premiê de Singapura por 35 anos] e Saddam Hussein".

Em outras palavras, MBS deveria ser considerado um visionário construtor de nações ou um déspota descontrolado?

Os que afirmavam que o líder saudita era, acima de tudo, perigoso tinham muitas evidências perturbadoras para mostrar: a guerra desenfreada no Iêmen, que produziu um desastre humanitário; uma amarga disputa com o vizinho Qatar, culminando em um bloqueio liderado pelos sauditas; a prisão temporária do primeiro-ministro do Líbano; uma batida policial contra alguns dos empresários mais ricos da Arábia Saudita; e a prisão de jornalistas e ativistas pelos direitos humanos --alguns dos quais, como Khashoggi, tinham fugido para o exterior.

Mas apesar de tudo isso o senso comum sobre MBS nos ministérios das Relações Exteriores ocidentais continuou sendo que ele era basicamente "positivo", embora um pouco impetuoso.

A decisão do príncipe saudita de permitir que as mulheres dirigissem carros foi um golpe de mestre na batalha para influenciar a opinião pública mundial. Sua aliança tácita com Israel para conter o Irã também foi essencial para mantê-lo nas boas graças da Casa Branca.

Mas o aparente assassinato de Khashoggi já modificou as atitudes ocidentais em relação a Salman. Apesar de toda a sofisticação com que ele manipulou os formadores de opinião nos EUA e na Europa, o príncipe claramente falhou em compreender o potencial impacto de um ato tão brutal e ousado.

Diferentemente das famílias iemenitas que foram vítimas das bombas sauditas, Khashoggi tinha uma coluna no jornal The Washington Post. A mídia americana hoje está em polvorosa, e o Congresso ameaça impor sanções à Arábia Saudita. Até Trump prometeu consequências "severas" se a culpa saudita for comprovada.

No entanto, apesar de os EUA hoje terem de descartar suas ilusões sobre MBS, não poderão modificar muito suas políticas. As autoridades ocidentais estão agudamente cientes da importância econômica e estratégica da Arábia Saudita. O reino é o maior exportador mundial de petróleo e o maior importador de armas.

Com os preços do petróleo já subindo conforme as novas sanções ao Irã entram em vigor, o papel dos sauditas como produtor dominante ganha ainda mais importância. Trump, obcecado por exportações, já deixou claro que está extremamente relutante em ceder o mercado de armas saudita à Rússia ou à China --e ele não é o único que tem essa preocupação, embora seja incomumente franco a respeito.

Sem um bom relacionamento com a Arábia Saudita, a influência americana no Oriente Médio cairá ainda mais. Diferentemente dos EUA, os russos hoje podem ostentar um sólido relacionamento com todas as principais potências regionais —incluindo Irã, Arábia Saudita, Israel, Egito e Turquia. A intervenção militar da Rússia no conflito sírio também significa que Moscou hoje tem um papel muito mais ativo que Washington nas negociações de paz na Síria, que poderão moldar o equilíbrio de poder em toda a região.

Os EUA, que costumavam ser o elemento central indiscutível na região, atualmente têm um conjunto muito mais limitado de relações que a Rússia. Washington cortou todos os canais com o Irã, e suas relações com a Turquia provavelmente continuarão abaladas --apesar de os turcos terem libertado o pastor americano Andrew Brunson, que esteve preso durante dois anos acusado de espionagem.

Se os EUA agora executarem a ameaça de punição "severa" à Arábia Saudita, também vão alienar os países do Golfo, o que poderá deixá-los sem aliados próximos na região, exceto Israel.

Por esse motivo, é provável que o governo Trump faça o possível para limitar as consequências diplomáticas do caso Khashoggi —e que até o Congresso atue com cautela. Diante das duras realidades da "realpolitik", é difícil culpá-los por isso. Mas a ideia de que os EUA podem armar uma estratégia grandiosa em torno da figura extravagante de MBS terá de ser abandonada. "Não deposite sua confiança em príncipes" sempre foi um bom conselho.

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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