Brasil deveria discutir relação entre maconha e violência, diz canadense

Segundo especialista, Canadá legalizou a droga para melhorar a saúde e a segurança públicas

Benedikt Fischer, especialista em estudo sobre drogas da Universidade de Toronto, em foto de 2015 - Alan Marques - 16.fev.15/Folhapress
Paula Leite
São Paulo

A discussão sobre legalização da maconha no Brasil deveria levar em conta a ligação do tráfico com o crime organizado e a violência, já que a droga serve como fonte de renda para gangues, diz Benedikt Fischer, professor do Centro de Vício e Saúde Mental da Universidade de Toronto e do departamento de psiquiatria da Unifesp.

Segundo o cientista, que ajudou a elaborar as diretrizes de regulamentação do uso de cânabis no Canadá, a legalização neste país foi motivada por preocupações com saúde pública e segurança, e não por reivindicações de liberdade individual.

Ele se preocupa com a possibilidade de que as empresas produtoras de maconha legal no Canadá passem a usar de práticas escusas para aumentar vendas e atrair novos usuários, motivadas pelo lucro.

*

Qual é a sua visão sobre a legalização da maconha no Canadá? Há problemas na legislação?
No geral é um movimento bom, seria estranho eu dizer algo diferente porque defendi a legalização. Claro que haverá desafios, estamos entrando em um experimento, cujos resultados estão bem abertos. Com certeza não funcionará perfeitamente. 

Ao tornar a maconha legal, não é que vamos dar às pessoas a liberdade de fazerem o que quiserem, mas sim vamos trazer esse produto para a legalidade, para que possamos abertamente regular, prevenir, intervir, em vez de só dizer que é ilegal e fazer com que as coisas piorem.

Ao criar a possibilidade de regular o que as pessoas usam, onde e como usam, a ideia é que a saúde pública e a segurança pública vão melhorar. 

Comparado com o Brasil, as taxas de uso de maconha são muito altas no Canadá. Cerca de uma em cada três pessoas entre 15 e 25 anos usam maconha [taxa que no Brasil fica entre 5% e 8%]. É uma droga muito mais popular aqui do que na América do Sul.

Você acha que a discussão da legalização da maconha não avança no Brasil porque o uso não é tão prevalente?
O Brasil é muito conservador quando se fala de drogas, mesmo quando comparado a outros países da América Latina. Trabalho no Brasil há bastante tempo e venho tentando entender. Acho que parte da razão é que vocês têm um movimento religioso bem forte. Como comparação, há o Uruguai, um país com tecido cultural e social muito diferente, onde o pragmatismo progressivo levou à legalização.

Por que o argumento de que a segurança pública pode melhorar com a legalização não é frequente no Brasil?
O uso de maconha em si não tem muita correlação direta com o crime, como acontece com o crack ou mesmo o álcool. Em termos de comportamento, a maconha faz as pessoas ficarem passivas, e não agressivas.
 
Mas é um mercado negro enormemente lucrativo, que dá combustível ao crime organizado, à violência, às guerras entre gangues. Não sei dizer o quanto da violência no Brasil está relacionada à maconha, sei que muito do produto consumido aí vem do Paraguai, mas com certeza há atividades de distribuição no país.

Então o argumento [pró-legalização] no Brasil poderia ser esse. Mas, para ser honesto, acho que o Brasil tem outros problemas de drogas para atacar que não a maconha. Vocês têm que pensar em como controlar o uso de álcool e, claro, o crack e a cocaína.

É um desafio explicar aos brasileiros por que a população no Canadá quis legalizar a maconha. Não foi por sermos extremamente liberais, e sim para melhorar a saúde e a segurança públicas. 

Que aspectos podem não funcionar na legalização da maconha no Canadá?
Vou dar dois exemplos: um é que a legalização só diz respeito ao uso de maconha por adultos. A pergunta é o que acontecerá com os jovens, que são os mais vulneráveis, entre os quais os níveis de uso são mais altos. Será que vão usar mais maconha com a maior disponibilidade? 

A outra questão é que a legalização só vai funcionar se as pessoas que compram no mercado ilegal migrarem para as lojas legalizadas. 

Muitos estão dizendo que os produtos vendidos legalmente não são o que as pessoas querem, ou que é muito complicado comprar legalmente. Esse foi um dos problemas no Uruguai: eles restringiram demais o que está disponível legalmente e as pessoas falaram: "dane-se, não vou fazer isso, é muito complicado". As pessoas estão tendo que ficar na fila por uma hora só para comprar um pouco de maconha.

Fila na abertura de uma loja da Sociedade de Cannabis de Québec, em Montréal, no dia em que foi legalizada a maconha no Canadá - Christinne Muschi - 17.out.18/Reuters

Essa venda regulada é bem diferente da forma como a maioria dos estados dos EUA que legalizaram a maconha o fizeram. Por quê?
O modelo canadense é mais orientado pela saúde, mais regulado. Nos EUA, a maconha foi legalizada porque as pessoas falaram: "Faz parte do nosso direito à liberdade usar esse produto e vendê-lo da forma que quisermos, porque a liberdade total é um princípio dos EUA".

No Canadá, tomamos uma abordagem mais utilitária, em que achamos que a legalidade é um caminho para controlar o comportamento, o acesso e os riscos para usuários e para a população em geral.
Também temos que pensar em como proteger o público de coisas como fumaça de segunda mão e do risco de gente dirigindo depois de usar maconha. Criamos normas muito estritas para evitar que as pessoas dirijam após beber e temos que fazer o mesmo para a maconha. 

Falamos do que pode não funcionar do lado dos consumidores. Há algo que o preocupe pelo lado dos fornecedores?
Temos um setor de maconha muito grande. São 125 produtores comerciais aprovados, e alguns são empresas multibilionárias. Elas estão disputando não só um mercado enorme no Canadá mas também globalmente.

A pergunta é: até que ponto esse setor vai se comportar como o setor do álcool ou do tabaco? Eles vão querer vender para o máximo de pessoas, para quem não é usuário, e vão criar produtos e estratégias de marketing para isso, porque o objetivo é o lucro.

Não tenho certeza de que o governo canadense regulou o setor suficientemente para controlá-lo a longo prazo. 

E a ideia de que essas empresas vão se autorregular?
Elas estão se apresentando de forma diferente, tentam se distinguir do álcool e do tabaco, dizem: "Estamos vendendo um produto saudável, terapêutico, temos seu interesse em mente". Acho que a longo prazo isso não vai se sustentar.
 
Há riscos no uso da maconha e, quando você tem empresas, o objetivo delas é crescer. Eu não acho que haja um plano bom o suficiente no Canadá para controlar isso. Já há empresas de álcool comprando empresas de maconha e criando produtos mistos, como cervejas com maconha. Isso será muito perigoso para a saúde pública a longo prazo.

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.