Desenho de mapas vira arma por maioria legislativa nos EUA

Republicanos usam Carolina do Norte como laboratório de manobra política

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Candidatos e apoiadores cumprimentam eleitores em Greensboro, no estado da Carolina do Norte, durante o voto antecipado para as eleições legislativas de novembro - Jay Westcott - 17.out.18/News & Record/Associated Press
Nova York

"Nosso objetivo era permitir que votasse todo homem branco que nós quiséssemos que votasse e permitir que não votasse ninguém que não quiséssemos". A frase, publicada em 1900 no jornal Charlotte News, é de Robert Broadnax Glenn, governador da Carolina do Norte de 1905 a 1909.

Sintetiza, porém, uma prática que continua sendo aprimorada 118 anos depois e que tem como objetivo fortalecer o poder de partidos na Carolina do Norte e em outros estados dos Estados Unidos.

A estratégia é diluir a força do adversário por meio de manobras políticas como o desenho de mapas distritais para quase eliminar eleitores rivais.

Na Carolina do Norte, assim como nos outros estados, vigora a regra do "uma pessoa, um voto". Isso significa que os distritos são desenhados de forma que cada habitante tenha a mesma representação nas esferas legislativas.

Mas o desenho é feito pelos legisladores estaduais, que recorrem a softwares e dados de eleitores na hora de definir os limites de cada distrito. É possível saber, por exemplo, se o morador vota nas primárias republicanas ou democratas.

A precisão é tamanha que é possível manobrar para se livrar de votos que ameacem uma vitória do partido nas eleições ou simplesmente evitar adversários na disputa.

A democrata Jen Mangrum desafiou o senador republicano Phil Berger pelo assento do 26º distrito estadual. Até conseguir isso, porém, teve que mudar de endereço duas vezes desde janeiro de 2017. "Eu avisei as pessoas de que eu planejava concorrer. Ele soube, redesenhou o distrito e me tirou dele", conta.

Para provar que realmente morava no novo endereço e poder disputar o assento, Mangrum teve que comparecer a três audiências. 

Na Carolina do Norte, o gerrymandering, nome dado à prática de desenhar o mapa distrital ou congressional conforme o interesse dos legisladores, não sai do noticiário.

Apesar de o termo ser usado desde 1812, ele ganhou força no estado a partir de 2011, quando os mapas foram redesenhados a partir dos dados do Censo de 2010 --o que ocorre a cada década por causa de mudanças demográficas.

"Há uma boa razão para o redesenho de distritos. O problema é que permitimos ao partido que está no poder que desenhe o mapa como quer", afirma Bob Phillips, diretor da organização Common Cause, de defesa da democracia.

Como quer mesmo. Em Greensboro, cidade famosa por protestos de estudantes negros, uma linha divide em dois distritos a universidade estadual. De um lado, seis dormitórios estudantis. Do outro, sete. "Os legisladores estão desenhando seus próprios distritos, e deveria ser o contrário. Eles estão escolhendo seus eleitores, para que sejam eleitos de volta", diz Phillips.

A regra geral é diluir o voto que beneficia o rival. Há duas estratégias: empacotar os eleitores em uma área ou fragmentá-los em vários distritos. No primeiro caso, o candidato do partido rival ganha de lavada, porque a maioria de seus eleitores está lá. Mas perde nos outros distritos.

No segundo, os votos rivais não são expressivos o suficiente para ameaçar o partido por trás do gerrymandering, que garante a maioria no estado. 

Na Carolina do Norte, como o objetivo é minar o poder democrata, o alvo são minorias, como afro-americanos (22,2% da população) e latinos (9,5%).


No momento, 10 dos 13 distritos congressionais da Carolina do Norte --o que equivale a 77% do total de deputados-- são representados por republicanos, o que se repete no Legislativo local. Já na eleição de 2016, o republicano Donald Trump recebeu cerca de 50% dos votos no estado, contra 46% de Hillary Clinton. 

Para o aposentado Michael Jennings, 72, a prática é frustrante. "Eu moro no 4º distrito congressional, um dos três democratas, representado por David Price. Eu adoro David, acho ele ótimo, mas ele recebeu 70% dos votos. Meu voto é desperdiçado", lamenta.

Se a Carolina do Norte é dominada pelos republicanos, os democratas encontram em Maryland um lugar para chamar de seu.

No estado, os republicanos terminaram as eleições de 2016 com somente um dos oito assentos na Câmara. "Os dois partidos fazem, se tiverem a chance", resume William Adler, especialista da Universidade Princeton.

No país, os republicanos passaram a dominar a estratégia após reconquistarem a maioria do Congresso americano em 2010.

"Não é um acidente. Somos um país dividido em que os democratas tendem a receber mais voto popular nas eleições, mas o poder político está do outro lado. Isso é resultado de uma estratégia", diz o jornalista David Daley. 

Ele é autor do livro "Ratf**ked" (ferrados), no qual detalha como figurões republicanos perceberam que as mudanças demográficas dificultariam vitórias eleitorais. 

"Eles tinham que criar uma nova estratégia. Não mudaram as políticas, não tentaram se tornar mais populares com os eleitores, tentaram mudar as regras do jogo", diz. 

Com isso, conseguiram uma proteção nos estados-pêndulo, que se inclinam para qualquer um dos partidos --muitos casos acabam na Justiça. 

As organizações que condenam a prática defendem que sejam criadas comissões que não tenham acesso a dados de eleitores na hora de formular os desenhos distritais. 

É algo que ocorre na Califórnia, que, para realizar a tarefa, fez uma comissão com cinco republicanos, cinco democratas e quatro independentes. Outros quatro estados farão referendos para criar mecanismos semelhantes.

Mas encerrar a prática não é tarefa fácil, até porque em muitos desses casos a decisão de levar a proposta para votação popular passa pelas mãos dos mesmos legisladores interessados em manter as coisas como estão, diz Dianna Wynn, da League of Women Voters do condado Wake. "Políticos não gostam de abrir mão do poder." 

Compare os sistemas eleitorais dos EUA e do Brasil
As eleições para a Câmara de Deputados americana são diferentes das brasileiras. No Brasil, quando um eleitor elege um deputado estadual, o voto vai também para o partido ou coligação. A quantidade de votos recebidos pela legenda ao qual o candidato pertence importa porque define quantos assentos cada um terá na Câmara. Os assentos obtidos são ocupados pelos mais votados em cada partido ou coligação.

Nos EUA, os 435 assentos da Câmara representam a soma dos assentos congressionais que cada um dos 50 estados americanos possui. Cada estado recebe uma quantidade de assentos proporcional ao tamanho de sua população. Estados mais populosos têm mais representantes, portanto. 

Cada um dos distritos congressionais é disputado por democratas, republicanos e independentes como Verde e Libertário. Ganham sempre republicanos ou democratas; só esses dois partidos têm representação no Congresso.

Erramos: o texto foi alterado

Diferentemente do que mostrava tabela comparativa, o estado de São Paulo elege 70 deputados federais, e não 25. A tabela foi corrigida.

 

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