Descrição de chapéu The New York Times

Jornalista que desapareceu era próximo de Bin Laden e da família real saudita

Jamal Khashoggi se mudou para os EUA depois de ser perseguido pelo príncipe herdeiro do país

Ben Hubbard David D. Kirkpatrick
Beirute | The New York Times

Jamal Khashoggi desembarcou em Washington no outono do ano passado, deixando para trás uma longa lista de problemas.

Depois de ter uma carreira bem-sucedida como assessor e porta-voz extra-oficial da família real da Arábia Saudita, ele fora proibido pelo novo príncipe herdeiro de escrever, até mesmo no Twitter. Sua coluna num jornal árabe de propriedade saudita foi cancelada. Seu casamento estava desabando. Para pressioná-lo a parar de criticar os governantes sauditas, seus parentes tinham sido proibidos de viajar.

Então, depois de Khashoggi chegar aos Estados Unidos, uma onda de detenções deixou vários de seus amigos sauditas atrás das grades, e ele decidiu que seria perigoso demais voltar para seu país no futuro próximo, talvez em qualquer momento.

Manifestante vestido como o príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohammed bin Salman, segura cartaz com o rosto de Jamal Khashoggidurante protesto em Washington contra o desaparecimento do jornalista
Manifestante vestido como o príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohammed bin Salman, segura cartaz com o rosto de Jamal Khashoggidurante protesto em Washington contra o desaparecimento do jornalista - Jim Watson - 8.out.18/AFP

Ele se reiventou nos EUA como crítico, escrevendo colunas para o jornal The Washington Post e acreditando ter encontrado segurança no Ocidente.

Mas a proteção do Ocidente só chegava até certo ponto, e isso não demorou a ficar claro.

Khashoggi foi visto pela última vez em 2 de outubro entrando no consulado saudita em Istambul, onde precisava buscar um documento para seu casamento. Ali, segundo autoridades turcas, uma equipe de agentes sauditas o matou e esquartejou.

As autoridades sauditas negam ter atacado Khashoggi, mas até hoje, quase duas semanas após seu desaparecimento , ainda não apresentaram provas de que ele saiu do consulado, nem propuseram qualquer explicação crível sobre o que lhe teria acontecido.

O desaparecimento do jornalista causou uma divergência entre Washington e a Arábia Saudita, principal aliada árabe da administração Trump. E prejudicou gravemente a reputação do príncipe herdeiro Mohammed bin Salman, 33, a força por trás do trono saudita, que desta vez pode ter ido longe demais até mesmo para seus apoiadores mais leais no Ocidente.

A possibilidade de o jovem príncipe ter ordenado o ataque a um dissidente cria um problema para o presidente Donald Trump e pode envenenar um relacionamento antes caloroso.

Pode convencer os governos e as corporações que fizeram vista grossa para a campanha militar destrutiva lançada pelo príncipe contra o Iêmen, seu sequestro do primeiro-ministro libanês e sua onda de detenções que Mohammed bin Salman é um autocrata implacável que fará qualquer coisa para afundar seus inimigos.

O desaparecimento de Khashoggi chamou atenção nada elogiosa ao príncipe herdeiro, mas também destacou as lealdades complexas de Khashoggi ao longo de sua carreira, em que ele equilibrou o que parece ter sido sua afinidade pessoal com a democracia e o islã político com seu longo histórico de serviços prestados à família real.

Sua atração pelo islã político o levou a forjar uma relação pessoal com o presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, que agora está exigindo que a Arábia Saudita explique o que foi feito de seu amigo.

A ideia de autoexílio no Ocidente não foi facilmente aceita por Khashoggi, 60, que trabalhara como repórter, comentarista e editor, chegando a tornar-se uma das personalidades mais conhecidas da Arábia Saudita. Ele chegou à atenção internacional pela primeira vez por entrevistar Osama bin Laden, então jovem, e mais tarde tornou-se conhecido como confidente de reis e príncipes.

Sua vida profissional lhe deu ótimos contatos e relações, e esse homem alto, extrovertido e de trato fácil parecia conhecer todo o mundo que tinha tido qualquer coisa a ver com a Arábia Saudita nas últimas três décadas.

Entrevistas com dezenas de pessoas que conheciam Khashoggi e sua relação com a liderança saudita indicam que foi seu gosto por escrever livremente, somado ao trabalho de promoção de reformas políticas a partir do exterior, que o colocou em rota de colisão com o príncipe herdeiro.

A Arábia Saudita é regida tradicionalmente por um consenso entre os príncipes seniores, mas o príncipe herdeiro Mohammed desmontou esse sistema, deixando seu próprio poder quase irrestrito. Se foi tomada a decisão de silenciar uma figura vista como traidora, é provável que a decisão tenha sido dele.

Osama, Adnan e a Irmandade Muçulmana

Kashoggi começou a ganhar fama pelo fato de conhecer Osama bin Laden.

Ele passara tempo em Jidá, a cidade de Bin Laden, e, como este, era de uma família destacada, mas não ligada à família real. O avô de Khashoggi foi um médico que tratou o primeiro rei da Arábia Saudita. Seu tio foi o célebre distribuidor de armas Adnan Khashoggi, mas Jamal Khashoggi não se beneficiou da riqueza dele.

Khashoggi estudou na Universidade Estadual de Indiana, nos EUA e, retornando à Arábia Saúdita, tornou-se repórter de um jornal em língua inglesa. Vários de seus amigos dizem que ele também ingressou na Irmandade Muçulmana nessa época.

Embora mais tarde ele tenha deixado de assistir às reuniões do grupo, ele continuou fluente no discurso conservador, islâmico e frequentemente antiocidental da organização, que sabia usar ou ocultar, dependendo do interlocutor de quem estivesse querendo se aproximar.

Seus colegas no jornal se recordam de Khashoggi como uma figura cordial, reflexiva e devota. Segundo Shahid Raza Burney, editor indiano que trabalhou com ele, Khashoggi frequentemente comandava orações coletivas na redação.

Como muitos sauditas na década de 1980, Khashoggi aplaudiu a jihad contra os soviéticos no Afeganistão, que era apoiada pela CIA e a Arábia Saudita. Assim, quando foi convidado por outro jovem saudita, Osama bin Laden, a ver a guerra em primeira mão, Khashoggi aproveitou a oportunidade de bom grado.

No Afeganistão, ele vestiu os trajes locais e foi fotografado segurando um fuzil de assalto, para o desagrado de seus editores. Mas parece que não chegou a combater de fato enquanto esteve no país a serviço do jornal.

“Ele foi para lá em primeiro lugar como jornalista –sim, como alguém que apoiava a jihad afegã, mas esse era o caso da maioria dos jornalistas árabes da época e também de alguns jornalistas ocidentais”, disse o pesquisador norueguês Thomas Hegghammer, que entrevistou Khashoggi sobre o período que ele passou no Afeganistão.

Mas o fato de a guerra não ter deixado o Afeganistão em situação segura deixou Khashoggi profundamente preocupado, assim como a virada posterior de Bin Laden em direção ao terrorismo.

“Ele ficou decepcionado porque os afegãos nunca se uniram, mesmo depois de toda aquela luta”, comentou um amigo saudita de Khashoggi, exigindo anonimato para falar, por temer represálias.

As viagens de Khashoggi ao Afeganistão e seu relacionamento com o príncipe Turki al-Faisal, que dirigia a inteligência saudita, levaram alguns de seus amigos a desconfiar que ele também estivesse atuando como espião do governo saudita.

Anos mais tarde, depois de comandos dos EUA terem matado Bin Laden no Paquistão, em 2011, Khashoggi lamentou a morte de seu antigo conhecido e a figura em que ele se transformara.

“Desabei em choro algum tempo atrás, com o coração partido por você, Abu Abdullah”, Khashoggi escreveu no Twitter, usando o apelido de Bin Laden. “Você foi belo e corajoso naqueles belos dias no Afeganistão, antes de se entregar ao ódio.”

Agentes turcos se preparam para entrar no consulado saudita em Istambul, último lugar que Khashoggi foi visto
Agentes turcos se preparam para entrar no consulado saudita em Istambul, último lugar que Khashoggi foi visto - Ozan Kose/AFP

De repórter a assessor da família real

Com sua carreira no jornalismo decolando, Khashoggi enviou reportagens da Argélia e do Kuait na primeira Guerra do Golfo. Ele ascendeu na hierarquia da mídia na Arábia Saudita, país onde príncipes são donos de jornais, conteúdos são censurados e escândalos que envolvam membros da família real costumam ser enterrados para não virem à tona.

Após os ataques de 11 de setembro de 2011, ele criticou fortemente as teorias conspiratórias comuns no mundo árabe, escrevendo que os aviões sequestrados “também atacaram o islã como religião e os valores de tolerância e coexistência que ele prega”.

Khashoggi foi nomeado editor do jornal saudita “Al Watan” em 2003, mas demitido menos de dois meses mais tarde devido a um artigo acusando um estudioso islâmico estimado de difundir ensinamentos usados para justificar ataques a não muçulmanos. Foi reconduzido ao cargo em 2007, dessa vez para uma permanência um pouco mais longa.

Khashoggi viajou com o rei Abdullah e se aproximou do príncipe Alwaleed bin Talal, investidor bilionário que mais tarde seria detido pelo príncipe herdeiro Mohammed. O príncipe Turki, ex-diretor de inteligência, contratou Khashoggi como assessor quando foi embaixador no Reino Unido e Estados Unidos.

Foi durante esse período que Khashoggi comprou o apartamento em McLean, Virginia (nos EUA), onde iria viver depois de fugir da Arábia Saudita.

Defende levantes no exterior e reformas em casa

Muitos dos amigos de Khashoggi dizem que, ao longo de sua carreira de serviços prestados à monarquia, o jornalista ocultou seu viés pessoal em favor da democracia eleitoral e do islã político ao estilo da Irmandade Muçulmana.

Quando um golpe militar na Argélia em 1992 acabou com as esperanças de um partido político islâmico de ganhar controle do Parlamento nesse país, Khashoggi e um amigo islâmico seu em Londres fundaram uma organização chamada “Amigos da Democracia na Argélia”.

O amigo em questão, Azzam Tamimi, que atuou como o representante público do esforço e ocultou a participação de Khashoggi, contou que a organização publicou anúncios em jornais do Reino Unido antes das eleições parlamentares nesse país, dizendo “quando você for votar, lembre-se que esse direito é negado a muitas pessoas pelo mundo afora, incluindo aos argelinos”.

Quando chegou aos 50 anos, a relação de Khashoggi com a Irmandade Muçulmana já era ambígua. Vários membros da organização disseram esta semana que sempre sentiram que Khashoggi estava ao seu lado. Muitos dos amigos seculares do jornalista não teriam acreditado nisso.

Khashoggi nunca defendeu mais que reformas graduais da monarquia saudita, tendo eventualmente apoiado suas intervenções militares para deter o que os sauditas consideravam ser a influência iraniana no Bahrein e no Iêmen. Mas ele encarou com entusiasmo os levantes que se espalharam por boa parte do mundo árabe em 2011.

Mas, como fora o caso da jihad afegã no passado, os movimentos da Primavera Árabe também o decepcionaram, descambando para a violência, enquanto a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos usavam seu poder econômico para esmagar a oposição e reforçar líderes autocráticos.

O analista do Oriente Médio Sigurd Neubauer, em Washington, que conhecia Khashoggi, disse que este “nunca gostou do fato de a Arábia Saudita ter usado sua política para acelerar a repressão na região”.

A tolerância saudita de críticas, por mínimas fossem, desapareceu quando o rei Salman ascendeu ao trono, em 2015, e deu poder tremendo a seu filho, Mohammed, o príncipe herdeiro conhecido informalmente por suas iniciais, MBS.

O jovem príncipe anunciou um programa para diversificar a economia e liberalizar as estruturas sociais, incluindo dar às mulheres o direito de conduzir veículos.

Khashoggi aplaudiu essas iniciativas, mas ironizou o modo autoritário em que o príncipe exercia seu poder. Quando Khashoggi criticou Trump após sua eleição, por exemplo, as autoridades sauditas o proibiram de se manifestar, temendo que ele prejudicasse o relacionamento delas com a nova administração americana.

O príncipe herdeiro Mohammed lançou mão de todo seu poder para perseguir seus críticos, proibindo-os de viajar e colocando alguns deles na prisão. Kashoggi deixou a Arábia Saudita no ano passado, antes de dezenas de seus amigos serem detidos e de centenas de sauditas destacados terem sido detidos no hotel Ritz-Carlton de Riad, acusados de corrupção. Vários deles, incluindo pelo menos dois filhos de antigos reis, ainda estão detidos.

Khashoggi começou a escrever colunas para o Washington Post, comparando o príncipe herdeiro Mohammed ao presidente russo, Vladimir Putin. Seus amigos supõem que esses textos o tenham levado a ser colocado na lista negra do príncipe.

“Mohammed bin Salman estava gastando milhões de dólares para criar uma imagem determinada dele próprio, e Jamal Khashoggi a estava destruindo com apenas algumas palavras”, disse Tamimi, o amigo do jornalista. “O príncipe herdeiro deve ter ficado furioso.”

Mas Khashoggi não ficou apenas nisso.

Ele estava planejando lançar um site na internet para publicar reportagens traduzidas sobre a economia de países árabes, incluindo a Arábia Saudita, onde, a seu ver, muitas pessoas não entendiam a escala da corrupção vigente nem o futuro limitado da riqueza petrolífera.

Khashoggi também estava fundando uma organização chamada Democracia no Mundo Árabe Agora, ou Dawn, na sigla em inglês. Quando desapareceu, disseram amigos do jornalista, ele estava tentando conseguir recursos e formar um conselho de direção da entidade.

Em abril, ao receber um prêmio do Centro para o Estudo do Islã e da Democracia, de viés islâmico, Khashoggi disse que a democracia estava sendo atacada em todo o mundo árabe por islâmicos radicais, líderes autoritários e elites receosos de que a participação popular pudesse desencadear caos. Ele opinou que a partilha do poder seria a única maneira de impedir guerras civis e assegurar governança melhor.

O príncipe herdeiro Mohammed “está investindo centenas de bilhões de dólares em projetos futuros e o está fazendo baseado em seus próprios juízos de valor e nos de um pequeno círculo de assessores”, disse Khashoggi. “Será que isso é o bastante? Não, não é.”

Kashoggi contou a amigos que, desde que ele se mudou para Washington, representantes do príncipe Mohammed o procuraram repetidas vezes, pedindo que ele moderasse o tom de suas críticas e convidando-o a voltar à Arábia Saudita.

Mas ele estava construindo uma vida nova. Ele e uma pesquisadora turca, Hatice Cengiz, tinham decidido se casar e radicar-se em Istambul.

Maggie Mitchell Salem, uma amiga de longa data, estava preocupada com Kashoggi e lhe pediu para avisá-la por mensagem de texto sempre que ele fosse à embaixada saudita em Washington.

“Ele riu de mim”, ela recordou. “Falou ‘Maggie, Maggie, não seja tola’.”

Tradução de Clara Allain

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.