Para China, muçulmanos presos em campos de detenção são 'estagiários'

ONU afirma que 1 milhão de uigures foram detidos a força e levados para os locais, o que Pequim nega

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Pequim e São Paulo | Associated Press e Reuters

Os integrantes de minorias muçulmanas na China que foram levados para campos de detenção são na realidade “estagiários” que estão aprendendo a serem chineses e a terem uma “vida moderna”, afirmou o principal dirigente da região.

As afirmações foram feitas por Shohrat Zakir, governador da província de Xinjiang (no noroeste do país), onde vivem essas minorias, e divulgadas nesta terça-feira (16).

A ONU e entidades de direitos humanos afirmam que cerca de 1 milhão de pessoas de minorias muçulmanas —em especial da etnia uigur— foram levados compulsoriamente para doutrinação nesses campos. Embora confirme a existência dos locais, a ditadura que comanda o país nega o resto das acusações.

Shohrat Zakir, governador de Xinjiang, onde vivem os uigures, durante evento em Pequim
Shohrat Zakir, governador de Xinjiang, onde vivem os uigures, durante evento em Pequim em março - Thomas Peter - 13.mar.18/Reuters

Segundo Zakir, que é de origem uigur, o objetivo dos centros é impedir a ação de terroristas na região e, ao mesmo tempo, combater a pobreza.

"Eles [uigures] são supersticiosos, são problemáticos, são potencialmente perigosos. O papel do partido-Estado é trazê-los à luz da civilização, transformá-los", afirmou em conversa com a agência estatal de notícias Xinhua.

Por isso ele classificou os muçulmanos como “estagiários” a afirmou que eles estão nos centros para aprenderem mandarim, terem aulas sobre a lei e a história chinesa e fazerem cursos profissionalizantes —em áreas como confecção de roupas, montagens de produtos eletrônicos, cabeleireiro e comércio eletrônico.

“Agora a tendência é eles desejarem e buscarem uma vida moderna e civilizada”, disse Zakir, que acrescentou que as pessoas internadas recebem uma ajuda financeira mensal e tem comida e moradia paga pelo Estado.

Testemunhas que passaram pelos campos, porém, descreveram uma situação muito diferente do cenário oficial. Segundo elas, os centros doutrinam uigures e outras minorias a abrirem mão da fê islâmica e a apoiarem o Partido Comunista chinês.

Todas também afirmaram que a ida aos campos foi compulsória, mesmo para pessoas sem ligação com o terrorismo. Os uigures reclamam ainda há décadas de sofrerem discriminação do governo central e de terem sua movimentação interna dificultada pelo governo central.

Já Zakir disse que a internação não é compulsória e que todos assinaram "acordos de educação" para receber uma "formação concentrada" e passar por "estudos ao vivo".

Segundo ele, apenas pessoas que foram “instigados, coagidas ou atraídos para atividades terroristas ou extremistas, ou pessoas que cometeram delitos menores quando envolvidos em atividades terroristas e extremistas” estão nos campos.

“Através do treino vocacional, a maioria dos estagiários foi capaz de refletir sobre seus erros e ver claramente a essência e os danos causados pelo terrorismo e pelo extremismo religioso”, disse. “Eles também são mais capazes de diferenciar o certo do errado e de resistir a infiltração do pensamento extremista”.

De acordo com o dirigente, a ação do governo vem dando resultado e não há registro de ações terroristas em Xinjiang nos últimos 21 meses.

Prédio na cidade de Hotan que testemunhas afirmam ser um dos centros usados pelo governo chinês para abrigar os uigures
Prédio na cidade de Hotan que testemunhas afirmam ser um dos centros usados pelo governo chinês para abrigar os uigures - Divulgação - 9.set.18/The New York Times

Minoria tem origem em império do século 7

Os uigures são a principal minoria étnica de Xianjian. Muçulmanos em sua maioria, eles representam 8 milhões dos 19 milhões de habitantes da provínci, segundo dados da BBC. A maior parte do resto é da etnia han, majoritária no resto do país, mas também há outras minorias muçulmanas, como usbeques e cazaques.

Há ainda cerca de 1 milhão de uigures que vivem fora da China, a maior parte em países próximos. Elas falam uma língua própria, também chamada de uigur, que faz parte da família de línguas turcomanas (onde estão idiomas como o turco, o cazaque, o turcomeno e o uzbeque). 

A origem dos uigures está em um império de mesmo nome que existiu em partes da China, Mongólia e Rússia entre o século 7 e o 9. Após sua derrubada, seus antigos moradores se espalharam pela região formando reinos menores, incluindo em Xinjiang.

A partir do século 10 eles passaram a ser convertidos ao islamismo, em um processo que só iria acabar no século 17, e também se misturara com outros grupos que também habitavam a região, dando origem aos atuais uigures —o termo, porém, só passou a ser usado no início do século 20. 

No séculos seguintes a região seria conquistada por mongóis e por budistas até ser dominada de vez pelo então império chinês no século 18. 

A isso se seguiram tentativas de independência dos uigures, sendo que uma das mais bem sucedidas foi a República do Turquestão Oriental, que teve apoio da União Soviética.

O país conseguiu ficar independente de 1944 a 1949, quando Mao Tse-tung fundou a República Popular da China e anexou a região.

Com isso o local passou a ser oficialmente denominado como Região Autônoma Xinjiang Uigur (com área pouco maior que o estado brasileiro do Amazonas) e passou a ser controlada por indicados de Pequim.

Com grande população rural, Xinjiang se tornou uma das regiões mais pobres do país, situação que se intensificou nas décadas seguintes. O governo central também passou a estimular a migração de membros da entia han para a região, diluindo assim a importância dos uigures.

Neste cenário, grupos uigures que defendiam a independência da região passaram a partir dos anos 1990 a realizarem ataques e atentados contra o governo. Pequim acusou os grupos de terem ligação com a rede terrorista Al Qaeda e passou a combater com violência os grupos separatistas, o que fez ONGs denunciarem casos de violação de direitos humanos.

Nos últimos anos, o governo chinês passou também a fazer investimentos na região, que receberá parte da Nova Rota da Seda. De acordo com Zakir, o governador de Xinjiang, o objetivo é que todos os moradores vivam acima da linha da pobreza até 2020.

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