Príncipe saudita fecha cerco a ativistas enquanto moderniza costumes do país

Desaparecimento de jornalista é novo episódio de escalada na repressão contra qualquer voz dissonante

Flávia Mantovani
São Paulo

Uma saudita que lutou pelo direito de dirigir foi colocada à força em uma avião nos Emirados Árabes Unidos, onde estudava, e presa assim que chegou a Riad. Um estudante asilado no Canadá que critica o governo nas redes sociais teve seu celular hackeado e seus irmãos foram presos como represália. Um renomado jornalista que também fazia críticas ao seu país desapareceu após entrar no consulado saudita na Turquia para tirar documentos.

Os três casos são exemplos de uma recente escalada na repressão por parte do governo da Arábia Saudita a qualquer voz dissonante, que atualmente não poupa nem aqueles que se exilaram em outro país em busca de segurança.

Ativista usa máscara do príncipe saudita Mohammed bin Salman em Washington, durante protesto pelo desaparecimento do jornalista saudita Jamal Khashoggi,
Ativista usa máscara do príncipe saudita Mohammed bin Salman em Washington, durante protesto pelo desaparecimento do jornalista saudita Jamal Khashoggi, - Jacquelyn Martin-10.out.2018/AP

Ao mesmo tempo em que se vende ao mundo como um modernizador e realiza reformas como o fim da lei que proibia mulheres de dirigir, o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman fecha o cerco contra sauditas que lutam por direitos humanos. As denúncias incluem ameaças a ativistas e a seus familiares, prisões arbitrárias, julgamentos injustos e ciberataques.

Organizações internacionais como a Human Rights Watch (HRW), a ONU (Organização das Nações Unidas) e a Anistia Internacional afirmam que a repressão piorou a partir de 15 de maio deste ano, pouco antes do fim do veto às mulheres na direção.

Ao menos 13 mulheres foram presas, fora os homens que também lutam pelos direitos femininos e foram detidos na mesma campanha, como o advogado de uma das réus. Nove dessas presas ainda não foram liberadas e estão sujeitas a longas penas, e várias outras foram proibidas de deixar o país.

O último capítulo dessa perseguição é o desaparecimento do jornalista Jamal Khashoggi, que morava na Turquia, após entrar no consulado de seu país em Istambul para tirar documentos. A polícia turca vê indícios de que ele foi morto por agentes dentro do edifício, apesar de o governo saudita negar.

Khashoggi era colaborador de meios de comunicação como o jornal americano Washington Post. A polícia acredita que ele foi assassinado e teve seu corpo desmembrado por 15 agentes sauditas que foram à Turquia especialmente para isso e voltaram para Riad no mesmo dia.

“Esse caso deixou em choque defensores dos direitos humanos e dissidentes sauditas em todo o mundo, erodindo qualquer noção de buscar um refúgio seguro no exterior”, declarou Lynn Maalouf, diretora de pesquisas de Oriente Médio da Anistia Internacional, referindo-se a uma possível “execução extrajudicial”.

“As autoridades estão enviando a mensagem de que qualquer saudita está sujeito à perseguição e à prisão, independentemente de seu perfil, de ter reputação internacional ou ligações com países como os EUA ou com organizações internacionais”, disse à Folha Adam Coogle, pesquisador de Oriente Médio da HRW.

“Antigamente, elas estariam a salvo, porque o governo sabia que haveria muita cobertura da imprensa. Agora eles estão dizendo que não se importam.”

Segundo o pesquisador, em setembro de 2017, quando foi anunciado que a proibição das mulheres ao volante iria acabar, autoridades sauditas alertaram ativistas para que não dessem entrevistas nem se manifestassem nas mídias sociais.

Saudita dirige carro pela primeira vez em Riad no dia 24 de junho, após o fim do veto às mulheres ao volante no país
Saudita dirige carro pela primeira vez em Riad no dia 24 de junho, após o fim do veto às mulheres ao volante no país - Nariman El-Mofty-24.jun.2018/AP

“Houve um esforço para evitar que as mulheres celebrassem o fim da proibição e levassem os créditos pela mudança. Eles queriam que aquilo fosse visto como uma concessão de um ditador benevolente, e não como resultado de anos de ativismo civil”, diz Coogle.

Ele afirma que não há nenhum espaço para o ativismo na Arábia Saudita atualmente e que as únicas vozes contrárias ao governo estão fora do país. “Praticamente todos os que defendem os direitos humanos ou fazem alguma crítica ao governo estão na prisão”, diz.  

A HRW criou uma campanha nas redes sociais para pressionar as multinacionais automobilísticas, que criaram anúncios para celebrar o fim do veto às mulheres dirigirem no país, a cobrarem a libertação dos ativistas presos.

“Essas empresas vão ganhar dinheiro com as vendas de carros para as mulheres sauditas enquanto aquelas que lutaram por essa nova lei estão na prisão. Estamos tentando engajá-las para nos ajudar a fazer essa pressão”, diz Coogle. “Tivemos muitas interações, mas infelizmente até agora não tivemos resposta das empresas”, completa.  

Segundo a HRW, não há queixas formais contra os presos, além de acusações vagas como conspiração e traição. Eles estão sujeitos a penas de 20 anos e até à execução.

A Arábia Saudita foi o terceiro país que mais aplicou a pena de morte no ano passado, atrás apenas da China e do Irã: segundo dados da Anistia Internacional, 146 execuções foram registradas no país em 2017.

Há um mês e meio, uma das dissidentes que estão presas foi condenada, junto com mais quatro pessoas, à pena de morte. Israa al-Ghomghan foi presa em 2015 por participar de manifestações pacíficas contra a discriminação de muçulmanos xiitas no reino predominantemente sunita. Se a sentença for cumprida, ela será a primeira ativista mulher executada no país.

O Alto Comissariado para Direitos Humanos da ONU criticou a falta de transparência dos processos contra ativistas e de informações sobre o paradeiro dos detidos.

“Pedimos com urgência que o governo saudita libere incondicionalmente todos os defensores dos direitos humanos que foram presos por seu trabalho pacífico, incluindo campanhas pelo direito de mulheres dirigirem”, diz um comunicado de julho deste ano. “Todos os defensores dos direitos humanos devem poder realizar seu trabalho sem medo de represálias e perseguição.”

Cena de vídeo mostra Loujain al-Hathloul em 2014 dirigindo seu carro dos Emirados Árabes Unidos até a Arábia Saudita; ele foi presa depois da divulgação das imagens
Cena de vídeo mostra Loujain al-Hathloul em 2014 dirigindo seu carro dos Emirados Árabes Unidos até a Arábia Saudita; ele foi presa depois da divulgação das imagens - 30.nov-2014/AP

Para pressionar os sauditas que vivem no exterior, o governo corta bolsas de estudo, envia convocações para que voltem ao país (onde são presos ou ameaçados) e prende familiares que moram lá, segundo relatos colhidos pelo The New York Times. Alguns sauditas evitam contato com conterrâneos no exterior por medo de serem espiões e não viajam para países árabes, para evitar serem enviados para casa à força.

Foi o que aconteceu com Loujain al-Hathloul, conhecida feminista que já havia ficado detida em 2014 por dirigir seu carro dos Emirados Árabes até a Arábia Saudita. Em março, ela foi sequestrada por agentes e Abu Dhabi e levada à força para seu país natal. Foi presa, solta e depois presa novamente, em maio. Seu marido, um famoso ator que estava na Jordânia a trabalho, também foi colocado à força em um avião e levado a uma prisão.

Outra ativista a ir para a prisão no fim de junho foi a professora universitária Hatoon al-Fassi, que lutou pelo direito ao voto feminino e foi também uma das primeiras sauditas a tirarem carteira de motorista.

Um terceiro caso foi o de Samar Badawi, conhecida internacionalmente por sua luta em prol dos direitos das mulheres e irmã de Raif Badawi, condenado a dez anos de detenção e a mil chibatadas por criar um blog que o governo considerou subversivo.

A família tem parentes que vivem no Canadá, e a prisão de Samar gerou um incidente diplomático entre o país da América do Norte e a Arábia Saudita, depois que a ministra do Exterior canadense apelou por sua libertação.

A ativista saudita Samar Badawi ao lado da ex-primeira dama dos EUA Michelle Obama (esq.) e da ex--secretária de estado Hillary Clinton; Samar foi presa por lutar pelos direitos humanos em seu país
A ativista saudita Samar Badawi ao lado da ex-primeira dama dos EUA Michelle Obama (esq.) e da ex--secretária de estado Hillary Clinton; Samar foi presa por lutar pelos direitos humanos em seu país - Gary Cameron/Reuters

Riad, que não havia comentado publicamente sobre a detenção de Badawi, reagiu com a expulsão do embaixador canadense, o congelamento de novas transações comerciais e de investimento com o país, a suspensão de um programa de intercâmbio estudantil e a suspensão dos voos da companhia nacional de aviação saudita para o Canadá.

Entre as reformas realizadas pelo príncipe Salman desde junho de 2017, estão, além do fim da proibição de mulheres na direção, o enfraquecimento do poder da polícia religiosa, a permissão a mulheres de frequentarem estádios esportivos e a liberação de cinemas comerciais e de shows de música.

Mas ativistas reclamam de leis discriminatórias que continuam em vigor, como o sistema de guardiões masculinos, pelo qual as mulheres precisam de autorização de um homem da família para tirar passaporte, se casar ou se matricular em universidades, por exemplo.

Em entrevista à Bloomberg na semana passada, Salman disse que algumas das mulheres presas recentemente vazaram informações confidenciais para agências de inteligência do Qatar e do Irã, consideradas inimigas. Ele afirmou que tentava se livrar de extremismo e terrorismo e que as mudanças no país não viriam sem um “pequeno preço”.

Modernização na Arábia Saudita

Reformas realizadas pelo príncipe herdeiro Mohammed bin Salman desde 2017

  • Julho de 2017: Fim da proibição de educação física para meninas nas escolas
  • Novembro de 2017: Limitação dos poderes da polícia religiosa, que não pode mais prender cidadãos
  • Dezembro de 2017: Primeiro show de uma cantora em um espaço público (a libanesa Hiba Tawaji)
  • Janeiro de 2018: Autorização para que mulheres frequentem estádios esportivos
  • Abril de 2018: Derrubada do veto aos cinemas comerciais (a primeira sessão foi do filme ‘Pantera Negra’)
  • Junho de 2018: Fim da lei que proibia as mulheres de dirigir
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