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Com MBS, Ocidente volta a cair no mito do jovem reformista árabe

Príncipe saudita segue linhagem de Bashar al-Assad e de filhos de ditadores da Líbia e do Egito

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Roula Khalaf
Financial Times

É um mito duradouro. A era do velho e teimoso autocrata árabe está acabando, e um filho jovem e com perspectivas modernas ascende.

O povo, que não tem poder sobre a questão, espera que o filho seja melhor que o pai. Os governos ocidentais se convencem de que o será, e decidem ajudá-lo a garantir a sucessão.

Ao longo dos últimos 10 anos, a política ocidental quanto ao Oriente Médio se baseou por diversas vezes no mito do jovem reformista árabe.

O príncipe herdeiro saudita, Mohammed bin Salman (no centro, abraçado), tira selfie durante evento com empresários em Riad
O príncipe herdeiro saudita, Mohammed bin Salman (no centro, abraçado) tira selfie durante evento com empresários em Riad - Stephen Kalin - 23.out.18/Reuters

Ele apareceu sob diferentes nomes: na Síria como Bashar al-Assad (filho de Hafez, que governou o país por décadas); na Líbia como Seif al-Islam (filho de Muammar Gaddafi); no Egito como Gamal Mubarak (filho do ex-ditador Hosni); e mais recentemente, na Arábia Saudita, como Mohammed bin Salman (filho do rei Salman).

Com graus variados de entusiasmo, eles todos foram promovidos e festejados nas capitais ocidentais. Mas se provaram invariavelmente tão repressivos quanto seus predecessores, e em alguns casos ainda mais brutais.

Parece ser esse o caso do príncipe Mohammed, 33, que deixou de lado a forma mais sofisticada de repressão saudita associada aos príncipes do passado, um grupo que incluiu seu pai, e partiu para a guerra aberta contra qualquer pessoa que discorde dele.

Uma provável vítima foi Jamal Khashoggi, o jornalista saudita desaparecido no início de outubro depois de uma visita ao consulado em Istambul.

Seu assassinato, confirmado pelo governo da Arábia Saudita, deflagrou protestos internacionais e colocou de luto solene as elites ocidentais que haviam comprado o mito do príncipe reformista.

Muito antes que o Ocidente se deixasse seduzir pelo príncipe Mohammed, houve o romance com o egípcio Gamal Mubarak.

Lembro-me de diplomatas ocidentais no Cairo argumentando que Gamal era o sucessor ideal para Hosni, ainda que o Egito não fosse uma monarquia e que o herdeiro, ex-executivo de um banco de investimentos, não tivesse demonstrado qualidades merecedoras de um alto posto.

Por fim, os asseclas corruptos de Gamal alienaram o comando das Forças Armadas e alimentaram o ressentimento popular contra seu pai. Quando irrompeu a revolução, em 2011, o povo e os militares se juntaram em uma causa comum e Mubarak foi derrubado.

Mais ridícula foi a bajulação de diplomatas e empresários a Seif al-Islam, o filho —bem-vestido e anglófono— do ditador líbio derrubado em 2011.

Quando os líbios se rebelaram contra Gaddafi, Seif al-Islam emergiu como guerreiro, empregando a mesma linguagem vitriólica que sempre caracterizou seu pai. Em um discurso no começo do levante popular de 2011, ele prometeu que o regime “lutará até o último homem, a última mulher, a última bala”.

Também me lembro dos primeiros dias de Bashar al-Assad, o oftalmologista casado com uma mulher glamorosa que capturou a atenção dos líderes europeus e os levou a acreditar que ele fosse capaz de reaproximar a então hostil  Síria da comunidade internacional.

Uma década mais tarde, Assad se viu diante de uma rebelião popular que enfrentou com uma malevolência que faz a brutalidade de seu pai parecer modesta.

Mesmo nas partes mais esclarecidas do Oriente Médio, os governantes da nova geração vêm sendo mais autoritários que seus pais. Os filhos do xeque Zayed bin Sultan al Nahyan, o muito respeitado soberano dos Emirados Árabes Unidos (EAU), morto em 2004, jamais demonstraram a tolerância pela qual ele era conhecido.

O que propele o mito do jovem reformista árabe? Em parte é a crença de que, no Oriente Médio antidemocrático, a continuidade é respeitada e a mudança é arriscada demais —uma atitude ocidental que foi reforçada pelo caos surgido na esteira da Primavera Árabe.

Outro motivo é a atração exercida por novos governantes que falam sobre reformas econômicas ainda que perpetuem sistemas aos quais falta transparência e prestação de contas.

Usualmente não existe base para o otimismo do Ocidente quanto a eles. É fato que a juventude traz energia. Mas a inexperiência pode canalizar essa energia na direção errada.

A inexperiência é agravada pela insegurança: a necessidade dos filhos de consolidar o poder os leva a dispensar velhos conselheiros. Eles governam com bases de poder mais estreitas e recuam a instintos paranoicos.

O erro recorrente das elites políticas ocidentais vem sendo confundir juventude com um comprometimento para com mudanças, e presumir que jovens governantes que viajam ao exterior, e mostram interesse em arte e no mundo digital, têm maior probabilidade de se comportar responsavelmente.

Lamentavelmente, o Oriente Médio tem mostrado que traços de modernidade não são incompatíveis com a crueldade.

Tradução de Paulo Migliacci

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