Como passei três dias retida na Sibéria sem passaporte

Escala forçada de voo durou mais de 60 h e resultou em teorias da conspiração e festa

Passageiros embarcam no aeroporto de Irkutsk, na Sibéria, onde ficaram retidos por três dias após problemas em voo da Air France de Paris a Xangai
Passageiros embarcam no aeroporto de Irkutsk, na Sibéria, onde ficaram retidos por três dias após problemas em voo da Air France de Paris a Xangai - Paula Soprana/Folhapress
Paula Soprana
São Paulo

Faltavam quatro horas para o voo Air France 116 pousar em Xangai, na China. O mapa na TV da poltrona do avião mostrava uma mudança de rota: um ponto amarelo aparecia sob Irkutsk, cidade da Rússia de que nunca havia ouvido falar e que agora era meu destino final.

Um comissário passou rápido pelos corredores e solicitou que levantássemos as janelas. Ainda atordoada pelo sono, atendi o comando sem entender que se tratava de um pouso de emergência. Me deparei com um horizonte montanhoso, inabitado e coberto de neve.

Alheia a qualquer tensão, tirei uma série de fotos da asa do avião e das montanhas iluminadas pelo sol enquanto o piloto anunciava um possível problema técnico.

A tripulação havia sentido cheiro de fumaça na cabine, mas não houve pânico, sequer falatório entre os passageiros. O chinês e o francês ao meu lado continuaram a assistir seus filmes e não forçamos interação.

O Boeing 777, com 282 pessoas, a maioria da França e da China, pousou em uma pista quase vazia, não fosse por um galpão caindo aos pedaços e homens uniformizados com chapéus russos de pelúcia olhando para o avião.

O piloto pediu que ficássemos sentados pois o voo seria retomado em cerca de duas horas. Troquei poucas palavras com o chinês. Retomei minha série –"The Handmaid's Tale", uma distopia em que mulheres viram prisioneiras de um Estado totalitário.

 Grupo de passageiros aguarda em Irkutsk, na Sibéria, onde grupo de mais de 280 pessoas ficou retido após problemas em duas aeronaves da Air France, em meio à rota de Paris a Xangai
Grupo de passageiros aguarda em Irkutsk, na Sibéria - Paula Soprana/Folhapress

Meia hora depois, no entanto, a equipe de bordo avisou que não havia gente especializada para resolver o problema no local. Peguei minha mochila, calcei meias e chinelos, pois meus tênis estavam úmidos, e desci no lugar onde passaria três dias com a mesma roupa, sem passaporte nem permissão para sair à rua, tampouco previsão de chegar ao destino final.

O aeroporto de Irkutsk é semelhante a uma rodoviária interiorana. Tem duas lojas, uma de souvenires e um free shop, dois restaurantes e um banheiro onde é liberado fumar. Com janelas fechadas e uma quantidade considerável de francesas tabagistas, era sufocante.

Para comer, as opções eram Subway, escolha dos chineses, e um lugar com inspiração irlandesa. Decidi pelo segundo, que tocava uma trilha sonora de músicas 'dance' dos anos 90. Pedi um chope e uma espécie de guioza russo (pelmeni, soube depois). Aceitava cartão de crédito. Sentei sozinha em uma mesa e tirei uma foto do prato, pensando que nunca mais estaria naquele cenário siberiano.

Por ora, não tinha internet para avisar amigos, trabalho e família sobre o ocorrido. Me limitei a contemplar qualquer coisa à volta. Do meu lado, irmãos franceses bebiam cerveja e comiam um dos outros pratos estranhos. Do outro, um grupo de recém-conhecidos pedia café e sanduíches. Já era noite quando uma russa iniciou um falatório em inglês do qual não captei nenhum termo além de Air France. Levantamos.

Em fila para sairmos do aeroporto, oficiais recolhiam os passaportes, colocavam em caixas e entregavam cópias das primeiras páginas aos passageiros. As malas ficaram no avião. Em conversa posterior com passageiros e com a embaixada brasileira em Moscou, entendi que o procedimento não seguia regras comuns.

Subimos no ônibus, que estava aquecido. As janelas tinham cortinas roxas com penduricalhos nas pontas e o bagageiro superior era contornado por um LED de neon multicolor. O cochilo nos 40 minutos de trajeto ao hotel foi acompanhado por um barulho estridente de sirene. A polícia escoltou o veículo por todo o percurso.

O hotel remetia à União Soviética, com carpetes vermelhos, TVs antigas e uma lojinha turística. Os sete andares eram aquecidos. Havia um lobby com sofás marrons, um bar de coquetéis, um restaurante e prateleiras envidraçadas que vendiam matrioskas com o rosto de Vladimir Putin e colheres com a cara do Stalin.

 Equipe do aeroporto de Irkutsk, na Sibéria, onde grupo de mais de 280 pessoas ficou retido após problemas em duas aeronaves da Air France
Equipe do aeroporto de Irkutsk, na Sibéria - Paula Soprana/Folhapress

Metade da população do voo que estava naquele hotel se amontoava em cima das recepcionistas que, estressadas, diziam em inglês que não havia quarto individual a todos. Dividi o 732 com Anne, uma francesa de 48 anos. Na primeira vez que reclamei, ela me mandou pensar nos refugiados. No outro dia, me convidou a praticar ioga no meio do corredor.

Lembrei que tinha uma blusa térmica na mochila, e a vesti debaixo de uma jaqueta. Descemos para jantar a refeição paga pela companhia aérea. Pratos individuais com massa, presunto e queijo cheddar aguardavam os passageiros. Para beber, chá de hibisco ou outra planta roxa. Perguntei por Coca-Cola, a título de dúvida. Não, respondeu a russa com a cabeça. Jantei e esqueci a jaqueta na cadeira. Nunca mais a recuperei.

Embarcaríamos na manhã seguinte. Todos a postos na recepção, e a viagem foi adiada para a noite. Passamos o dia no hotel. Uns bebiam no bar, outros faziam chamadas em vídeo. Tentei assistir a um documentário no lobby, mas fui impedida por um clubinho de homens russos que acharam "estranho" uma jovem sozinha em Irkutsk e não paravam de puxar qualquer papo inconveniente. Pedi a um guarda que me deixasse sair por um minuto.

Os argumentos de "brasileiros não precisam de visto", "somos amigos de Brics" e "não vou caminhar além daquela praça" não surtiram efeito para além de uma expressão de pena. "Não posso. Everything will be fine (tudo vai ficar bem)", me respondeu pelo tradutor do smartphone.

Apesar da série de negativas russas, uma recepcionista ligou para o quarto e perguntou quanto custava minha jaqueta perdida. Uma hora depois, apareceu com o equivalente em rublos e uma champanhe, que me entregou de maneira gentil. "Ficamos tristes que tenha perdido sua roupa, mas podemos lhe oferecer isso".

À noite, entramos no segundo avião vindo de Paris. O termômetro marcava -15ºC. Novamente, a aeronave não decolou. Dessa vez, por um problema hidráulico. Nas conversas entre os estrangeiros “exilados”, predominava a teoria de que Vladimir Putin queria barrar a entrada de um chinês poderoso do voo em solo russo. Aquilo se tratava de uma "grave crise diplomática", visto que os russos não facilitavam a abertura do bagageiro, "uma clara demonstração de poder", me disse um francês.

De segunda para terça-feira, a permanência entre o avião e o aeroporto durou umas dez horas não dormidas. O espaço das aeromoças havia se transformado em um lugar de socialização, em que os passageiros abriam vinhos e pegavam pães sem pedir permissão. O clima de festa permaneceu para alguns, que enviaram vídeos ao grupo de WhatsApp dos passageiros, o Les Naufragés AF 116, com franceses dançando em cima da mesa do bar do hotel.

Voltamos para um outro hotel enrolados em cobertores da Air France –os da classe executiva eram mais quentes. O acesso à internet era restrito. A imprensa local aguardava com câmeras e microfones.

Editaram reportagens da saga francesa com músicas como "Voyage Voyage", do Desireless, e "Non, Je ne Regrette Rien" (Não, não me arrependo de nada, na tradução livre), de Edith Piaf. Do outro lado, Anne ouvia uma rádio parisiense que chamava a história de “conto kafkiano”. Pelo computador dela, consegui repassar atualizações a uma amiga no Gmail.

Depois de uma escala de mais de 60 horas, partimos na manhã de quarta-feira, em um voo altamente aplaudido e filmado por smartphones. Uma aeromoça me ofereceu um pacote azul fechado. Perguntei o que era. "Meias". "Agora?", respondi. "Você nunca sabe quando vai precisar".

A Air France reembolsou os bilhetes dos passageiros do AF 116, pagou uma indenização e realocou parte deles na classe executiva em seus voos de volta.

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