Descrição de chapéu The Washington Post
Tamara Taraciuk Broner e Kathleen Page

Crise de saúde na Venezuela exige resposta regional urgente

Não importa o quanto o governo tente esconder a verdade; números falam por si próprios

Tamara Taraciuk Broner e Kathleen Page
The Washington Post

O presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, finalmente pediu ajuda à Organização das Nações Unidas (ONU) em meados de novembro para comprar equipamento médico, dizendo que "o imperialismo norte-americano está nos perseguindo e bloqueando". Dias antes, no entanto, o principal hospital público de Caracas, a capital venezuelana, recusou medicamentos e suprimentos doados pelo grupo não governamental Médicos Sem Fronteiras. 

À primeira vista, pode parecer contraditório. Mas é mais provável que revele uma mudança incipiente na absoluta negação pelo governo Maduro da crise humanitária que assola o país. 

Paciente em hospital de Caracas em um dia em que faltou água no estabelecimento
Paciente em hospital de Caracas em um dia em que faltou água no estabelecimento - Marco Bello-14.ago.2918/Reuters

O governo Maduro continua tão opaco e repressivo quanto sempre foi. Em janeiro, o presidente chamou os que denunciam a crise de "traidores da pátria". A ameaça deve ser levada a sério em um país sem independência judicial, onde os críticos foram presos arbitrariamente e torturados, e a fome foi usada para o controle social e político.

O governo parou de publicar informação nutricional e boletins epidemiológicos sobre dezenas de doenças anos atrás. Médicos nos disseram que as autoridades hospitalares os proíbem de fornecer estatísticas, de chamar a atenção publicamente para a crise de saúde ou de incluir a desnutrição como diagnóstico nos registros médicos de pacientes. Vários profissionais médicos foram demitidos ou detidos por se manifestarem. Alguns corajosos continuam documentando a crise fora do radar, apesar de temerem retaliação. 

Não importa o quanto o governo tente esconder a verdade, porém, os números falam por si próprios.

Em 2018, a Organização para Agricultura e Alimentação da ONU (FAO) indicou que, entre 2015 e 2017, 11,7% da população da Venezuela —3,7 milhões de pessoas—  estavam subnutridos, contra menos de 5% entre 2008 e 2013. Estatísticas não oficiais indicam que 80% das famílias venezuelanas vivem em insegurança alimentar, e a porcentagem de crianças com menos de cinco anos com desnutrição severa e aguda-moderada em alguns locais ultrapassa o limite de crise definido pela Organização Mundial de Saúde (OMS).

A Venezuela é o único pais de renda média no mundo em que um grande número de pacientes com HIV foram obrigados a interromper o tratamento antirretroviral. Entre os 79 mil pacientes infectados com HIV registrados para receber tratamento do sistema de saúde pública, 87% não o estão recebendo. O colapso do sistema médico é tão grave que doenças infecciosas facilmente evitáveis por meio de vacinação aumentaram. Segundo a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), mais de 7.300 casos suspeitos de sarampo foram relatados desde que começou um surto em meados de 2017, após oito anos em que só um caso foi relatado. Depois de nove anos sem notificações de difteria, mais de 2.000 casos foram registrados nos últimos dois anos, com mais de 200 fatalidades.

A OMS relatou que a malária é uma epidemia em nove dos 23 Estados da Venezuela, e está aumentando no ritmo mais rápido no mundo. Em 2017, houve mais de 406 mil casos de malária, um aumento de 69% em relação ao ano anterior.

O número de casos de tuberculose relatados aumentou de 6.000 em 2014 para mais de 10.000 em 2017 --o maior índice de incidência na Venezuela em 40 anos.

O colapso do sistema de saúde do país ficou evidente para o mundo com o êxodo maciço de venezuelanos. Mais de 3 milhões fugiram desde 2014, segundo a ONU. Muitos cruzam as fronteiras para o Brasil ou a Colômbia em busca de cuidados médicos ou alimentos. Seria de esperar que o governo Maduro admitisse a gravidade da situação e pedisse a ajuda necessária. Mas ele passou de negar o que estava acontecendo a dizer que os problemas resultam totalmente de uma crise econômica causada pelas "sanções econômicas" estrangeiras.

Mas a maioria das sanções —impostas pelos EUA, o Canadá e a União Europeia— se limitam ao cancelamento de vistos e ao congelamento de bens das autoridades envolvidas em abusos e corrupção. Elas não têm impacto na economia venezuelana.

Em 2017, os EUA também impuseram sanções financeiras, incluindo uma proibição a negócios com novas ações e títulos emitidos pelo governo e sua companhia de petróleo estatal, PDVSA. Mas mesmo estas incluem uma exceção às transações para compra de remédios e alimentos. Na verdade, o governo comprou alimentos no exterior, mas esses esforços deram origem a denúncias de corrupção. 

Mais ajudas das agências da ONU começaram a chegar à Venezuela recentemente, mas talvez sejam insuficientes e estejam atrasadas demais. Na segunda-feira (26), a ONU anunciou o primeiro financiamento de emergência para o país, no total de US$ 9,2 milhões em ajuda de saúde e nutricional, mas algumas pessoas temem que o dinheiro acabe desviado pela corrupção.

A mudança de retórica de Maduro, retratando-se como uma vítima, não lhe dará a legitimidade internacional que ele perdeu, a menos que haja mudanças reais.

Para defender os direitos à alimentação e saúde na Venezuela, os governos regionais deveriam convocar uma reunião de alto nível e convidar especialistas da Organização dos Estados Americanos, da UE, dos principais órgãos da ONU e de organizações não governamentais para criarem um plano de ajuda. Os participantes devem concordar com estratégias imediatas, de médio e de longo prazo, que incluam uma avaliação independente da escala da crise.

E então —o que poderá ser ainda mais difícil— eles devem aplicar pressão considerável sobre a Venezuela para aceitar a ajuda que for necessária. Enquanto isso, eles devem considerar trabalhar estreitamente com grupos não governamentais e religiosos para levar mais ajuda ao país. Isso não solucionará o problema, mas poderá oferecer um alívio adicional e muito necessário à população venezuelana.

Broner é pesquisadora das Américas e cobre a Venezuela para a Human Rights Watch; Page é professora-associada e médica na Universidade Johns Hopkins; tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves 

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