Juntamo-nos à horda nazista para escapar, diz sobrevivente da Noite dos Cristais

Judeu que mora no Brasil relata marco do início da violência nazista contra judeus, que faz 80 anos

Vestindo um blazer preto, camisa cinza e uma boina preta, Lewinski aparece sentado à frente de um fundo de madeira escura. Ele gesticula com a mão esquerda enquanto fala.
Geraldo Lewinski, sobrevivente da Noite dos Cristais, em entrevista à Folha em São Paulo - Karime Xavier/Folhapress
São Paulo

O judeu alemão naturalizado brasileiro Geraldo Lewinski tinha 10 anos quando viveu a Kristallnacht, a Noite dos Cristais, que marcou o início da perseguição violenta dos nazistas aos judeus. 

Para sobreviver, a família mimetizou-se à multidão raivosa na madrugada de 9 para 10 de novembro de 1938, quando Berlim foi tomada por depredação e pichações antissemitas. Pressentindo o massacre, os Lewinski fugiram para o Brasil em 1939, escapando do Holocausto que mataria 6 milhões de judeus.

 

Morávamos numa das piores regiões da Alemanha [em termos de antissemitismo], a Prússia Oriental [hoje dividida entre Polônia, Lituânia e Rússia]. Meu pai, Martin, tinha uma loja de artigos de couro. Havia sinagogas e serviços judaicos, mas nos perseguiam. 

Na escola que frequentei na cidade de Allenstein, os alunos judeus eram perseguidos pelos professores e colegas. Para você ter uma ideia do que era a mentalidade alemã, um dia, durante a aula, um dos alunos furou o olho de outro com a caneta-tinteiro. Qual foi a reação do professor? "Poxa, perdemos um soldado alemão".

Em Allenstein, havia uma floresta muito legal, pertinho de casa, onde todo domingo íamos com meus pais catar cogumelos e framboesas. Um dia, caiu uma pancada de chuva e um carro atolou na lama. Desceu um cara uniformizado e nos pediu ajuda. O camarada fardado se apresentou: "Eu sou o general Von Lewinski". Meu pai falou: "Meu nome também é Lewinski, que coincidência!". Von Lewinski era general de carreira, não nazista, e falou: "Vou dar um conselho, saiam da Alemanha imediatamente". 

Meu pai até queria, mas não achávamos aonde ir. A propaganda nazista era tão forte em todo o mundo que ninguém queria saber de judeus.

Depois disso, mudamo-nos para Berlim, em 1938. Mas antes meu pai teve de deixar a loja praticamente de graça para os alemães. Vendeu por 50 marcos [o equivalente a R$ 1.350 em valores de hoje].

Naquela época, todas as lojas já tinham que exibir uma placa que as identificasse como pertencentes a judeus para que os arianos não comprassem lá. Só os alemães não assimilados ao nazismo continuavam comprando.

Em Berlim, a vida judaica continuava mais ou menos estável. Havia uma escola judaica, com a sinagoga, que a gente frequentava. Era muito legal, pela primeira vez a gente participava de aulas com tranquilidade. Ficava bem no centro, próxima à Alexanderplatz.

No dia 9 de novembro de 1938, meu irmão e eu fomos à escola. Quando chegamos lá, estava uma gritaria, um incêndio, os rolos da Torá sendo jogados na rua, queimados, destruídos, pisoteados. Aquilo foi uma cena impressionante, que não dá para sair da memória.

Corremos de volta para casa para avisar meus pais. Nós morávamos no segundo andar de um prédio bem em frente à Gestapo [a polícia secreta de Hitler]. Olhamos pela janela e vimos caminhões sendo carregados de judeus para serem levados para os campos de concentração. 

Ficamos rezando "Ana H'Hoshia na", Deus, por favor, nos salve. Nisso, os nazistas começaram a entrar no prédio. Como havia escadas nos fundos, pegamos umas coisas e conseguimos sair e nos refugiar num parque perto dali. 

À noite, começou uma barulheira tremenda, e, como na Alexanderplatz havia muitas lojas judaicas, percebemos que elas estavam sendo depredadas. As vitrines eram quebradas, e as pessoas gritavam: "judeus porcos, judeus porcos". Os nazistas estavam procurando judeus por todos os lados, inclusive no parque onde estávamos escondidos. 

Aí, como não tínhamos aparência de judeus e meu irmão era aloirado, meu pai teve a seguinte ideia: "Vamos nos misturar com essa horda, aí não vai dar para perceber". 

Então vimos tudo isso de perto. Porque eu estava junto com a horda. Claro que a gente não gritava, só abria a boca. Mas essa foi a nossa salvação. Vimos as vitrines sendo destruídas, gente atirando pedras. E os estilhaços no chão.

Quando chegou de manhã, voltamos a nos esconder no parque. Passaram horas até retornarmos ao apartamento, que estava intacto, e meu pai conseguir um abrigo num galpão, onde havia mais uns 20 ou 30 judeus escondidos.

Um amigo do meu pai conseguiu um visto para a República Dominicana. Ninguém conhecia, mas era melhor do que ficar na Alemanha. 

Depois, conseguimos um visto para o Brasil com o embaixador brasileiro na Antuérpia, na Bélgica. 
Fizemos as malas sob supervisão nazista. Não podíamos levar nada, nem joias, nem objetos, o máximo era 50 marcos. Em 21 de abril de 1939, desembarcamos em Santos.

Desde criança, estávamos sempre preparados para sermos perseguidos. Não era exatamente uma novidade. A gente já estava, entre aspas, acostumado a ser perseguido. Como todos os judeus na Alemanha.

Aliás, muitos judeus que lutaram na Primeira Guerra receberam depois da guerra, em 1918, uma medalha de honra. E muitos acreditaram naquela medalha [como garantia de não perseguição]. Não adiantou nada. O antissemitismo continua.

A gente não esquece. Tudo o que aconteceu nos ajuda a ir em frente, a progredir. Não consigo contar tudo porque fico emocionado. Até hoje, quando eu vou a uma sinagoga, eu penso: Que bacana, vi minha sinagoga sendo destruída e aqui estou eu. 

Ou quando vejo judeus andando com o quipá, indo para a sinagoga no sábado ou na sexta-feira, eu fico emocionado. Porque nosso povo, apesar de tudo, ainda vive. Em hebraico dizemos "Am Israel Chai": o povo de Israel vive.

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