Descrição de chapéu The New York Times

Moradores de ilha isolada que mataram americano a flechadas têm histórico de hostilidade

Missionários de 26 anos tentou entrar na ilha para catequizar nativos

Kai Schultz Hari Kumar Jeffrey Gettleman
Nova Déli (Índia) | The New York Times

No final do século 19, um oficial da marinha britânica descreveu sua chegada a uma remota ilha cercada por recifes de coral, no Mar de Andaman, e como encontrou lá uma das mais enigmáticas tribos de caçadores-coletores do planeta, um grupo extraordinariamente isolado de pessoas "dolorosamente tímidas", que comiam raízes e tartarugas e colecionavam crânios de porcos selvagens.

Fascinado, o oficial Maurice Vidal Portman basicamente sequestrou diversos ilhéus, levando-os para sua casa em uma ilha maior, onde os britânicos operavam uma prisão. Lá, seus cativos adultos adoeceram e morreram, e ele devolveu as crianças à ilha de origem e abandonou o experimento, definindo-o como fracasso.

"Não se pode dizer que tenhamos feito algo mais do que aumentar seu terror generalizado e sua hostilidade em relação a quaisquer visitantes", escreveu Portman em seu livro, publicado em 1899.

Na semana passada, John Allen Chau, 26, do estado de Washington, pagou US$ 350 a um grupo de pescadores para que o levassem a Sentinela Norte, no meio da noite. Os pescadores o aconselharam a não ir.

Mesmo assim, ele remou seu caiaque para a praia, carregando uma Bíblia, de acordo com Deprendra Pathak, o chefe de polícia da região.

Chau tentou se comunicar com os aldeões, pessoas de baixa estatura que traziam o corpo revestido de uma pasta amarela, falando o idioma deles. Alguns se mostraram amistosos e outros não, de acordo com Pathak, que citou um longo bilhete entregue por Chau a um pescador pouco antes de iniciar a aproximação em seu caiaque, para o caso de ele não retornar.

No bilhete, ele escreveu que Jesus lhe deu a força de que ele necessitava para ir aos lugares proibidos do planeta, disseram policiais.

O pai dele, Patrick Chau, disse na quinta-feira que a fé cristã lhe ofereceu consolo, ao ser informado da morte de seu filho. Ele disse que uma passagem da Bíblia era especialmente confortadora: "Há uma hora e uma estação para tudo sob o céu".

Organizações missionárias afirmaram que Chau morreu pela maior das causas, e seus amigos o definiram como mártir. "John era um embaixador gracioso e delicado de Jesus Cristo", afirma um comunicado do All Nations, um grupo internacional de missionários cristãos. "O privilégio de divulgar o Evangelho sempre envolveu grande custo. Oramos para que os esforços e sacrifício de John rendam frutos eternos, com o tempo".

De acordo com os pescadores que ajudaram Chau, o percurso de Port Blair a Sentinela Norte demorou algumas horas. Chau aguardou até o alvorecer do dia seguinte para tentar chegar à ilha. Ele colocou seu caiaque na água a menos de 800 metros da costa, e remou na direção da ilha.

Os pescadores disseram que os aldeões dispararam flechas contra ele, e que Chau recuou. Ele aparentemente repetiu a tentativa diversas vezes, nos dois dias seguintes, disse a polícia, oferecendo presentes como uma bolinha de futebol, linhas de pesca e tesouras.

Mas na manhã de 17 de novembro, os pescadores disseram ter visto os ilhéus ao lado do corpo de Chau.

As sete pessoas que ajudaram Chau a chegar à ilha foram detidas e serão acusadas de homicídio culposo, e de violação das leis de proteção a tribos aborígenes.

Em post no Instagram, a família de Chau pediu pela libertação dos sete, e disse que ele "se aventurou por vontade própria".

A Índia monitora rigorosamente o acesso às tribos, que são protegidas sob as leis do país, e os grupos indígenas que vivem nas ilhas de Andaman e Nicobar estão entre os mais cuidadosamente guardados.

As ilhas ficam a mais de 1,1 mil quilômetros do continente. O governo indiano chegou à conclusão de que qualquer contato com esses ilhéus, cujo estilo de vida pouco mudou ao longo dos séculos, poderia destruir sua cultura e até suas vidas. Os sistemas imunológicos dos moradores podem não estar adaptados a micróbios modernos.

Mas alguns representantes do governo dizem que essa é uma abordagem antiquada e paternalista.

Os ilhéus, que Pathak descreveu como um tesouro cultural a ser protegido, usam tangas e vivem em casebres. Acredita-se que a população da ilha seja de entre 50 e 100 pessoas, e que eles cacem com lanças e flechas, produzidas com pedaços de metal que o mar leva à ilha, uma região de densa cobertura florestal.

O antropólogo indiano T.N. Pandit, que visitou Sentinela Norte diversas vezes entre 1967 e 1991, disse que a hostilidade deles tem uma explicação simples: querem viver sozinhos.

"Eles não querem nada de você. É você que os procura", ele disse. "Suspeitam que não tenhamos boas intenções. Por isso resistem".

Os antropólogos acreditam que os moradores da ilha descendam de imigrantes africanos que chegaram às ilhas Andaman milhares de anos atrás. Sentinela Norte é parte do grupo cada vez menor de ilhas que, em 2018, continuam a ter muito pouco contato com o mundo externo.

Depois que a Índia conquistou independência do Reino Unido, grupos de antropólogos tentaram estudar os ilhéus.

Mas ninguém conseguiu estabelecer comunicação. Pandit disse que em diversas ocasiões os moradores da ilha deram as costas aos antropólogos e se agacharam, como se estivessem defecando.

Em 2006, dois pecadores indianos que chegaram à costa da ilha por acidente foram mortos.

Quando um helicóptero militar sobrevoou a ilha em baixa altitude, alguns homens dispararam flechas contra ele. Hoje em dia, as autoridades indianas preferem evitar riscos. A marinha mantém uma zona de bloqueio de cinco quilômetros em torno de Sentinela Norte.

Mas a polícia suspeita que Chau tenha viajado à noite com a intenção de evitar a atenção das autoridades.

Não se sabe que nome os ilhéus de Sentinela Norte usam para se descrever, ou se existe alguma outra comunidade no planeta que compreenda seu idioma. Quando uma expedição levou membros de outra tribo indígena a Sentinela Norte, acreditando que poderia haver semelhanças entre os idiomas dos dois grupos, eles não conseguiram se entender.

O maior avanço conquistado aconteceu em 1991, quando alguns antropólogos se aproximaram da costa da ilha e, de dentro do mar, deram cocos de presente aos ilhéus, que sorriam. Mas alguns anos depois essas expedições que levavam presentes à ilha foram abandonadas.

A.K. Singh, antigo vice-governador de Andaman e Nicobar, disse que encontros amistosos eram raros. Ele disse que existiam duas escolas de pensamento sobre como governar essas ilhas, que afinal são parte da Índia.

De um lado há aqueles que sustentam que "qualquer contato prejudica os interesses deles, e portanto é melhor deixá-los em paz", ele disse. "O outro lado questiona nosso direito de lhes negar os frutos do desenvolvimento. Por que os filhos deles não deveriam ir à escola? Eles aspiram a um modo de vida mais moderno".

"Essas opiniões sempre estiveram em conflito", disse Singh.

Quanto ao que os ilhéus desejam, especialistas dizem que é muito difícil saber. Alguns anos atrás, depois que um jovem de uma outra comunidade no passado hostil, os jarawa, teve uma fratura em sua perna tratada por um hospital em Andaman, as atitudes da comunidade jarawa começaram a mudar.

Mas não de todo. Em 2015, um homem jarawa foi acusado de assassinar um bebê de pele mais clara, filho de uma mulher jarawa e aparentemente de um forasteiro. Um líder tribal disse que se o corpo do bebê fosse entregue aos investigadores, "o mundo começará a tremer, e todos morreremos". A polícia não deteve o homem jarawa pelo crime.

O mesmo pode acontecer agora. As autoridades indianas estão estudando se devem mover acusações por homicídio ou mesmo se devem tentar recuperar o corpo de Chau, que a polícia acredita possa estar sepultado na praia.

Alguns policiais se preocupam com as consequências de uma investigação. Se eles forem à ilha para recuperar o corpo de Chau, poderiam ser mortos, como ele foi.

Tradução de PAULO MIGLIACCI

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