Descrição de chapéu The Washington Post

Ucrânia retira estátuas de Lênin, mas não sabe o que colocar no lugar

Governo pró-Ocidente criou leis para apagar do espaço público figuras do período comunista

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pedestal vazio onde antes ficava uma estátua do líder comunista ^Vladimir Lênin em Obukhiv, na Ucrânia
Pedestal vazio onde antes ficava uma estátua do líder comunista Vladimir Lênin em Obukhiv, na Ucrânia - Oksana Parafeniuk/The Washington Post
Anton Troianovski
Hryhorivka (Ucrânia) | The Washington Post

Quatro anjos e a Virgem Maria estão no lugar antes ocupado pelo comunista.

“A gente costumava se embebedar ao lado de Lênin”, comentou Volodimir, mecânico de 45 anos, que passava pelo lugar.

“Agora deve ser pecado beber ali”, disse sua amiga Iulia.

Cinco anos após o início da revolução pró-ocidental na Ucrânia, a figura antes onipresente de Vladimir Lênin foi erradicada pela lei. A mesma coisa aconteceu com outros símbolos da era soviética, eliminados dos edifícios, praças e ruas do país.

Mas os ucranianos ainda procuram sentido e identidade nos espaços que sobraram.

Dependendo de onde você olha, esses espaços hoje são um pedestal vazio. Ou um pedestal substituído por uma cruz de madeira. Ou uma placa nova pregada a uma pedra. Ou azulejos novos. Ou até um simples círculo de terra.

Como em outras partes da antiga União Soviética, a imagem do líder bolchevique Lênin continuou a ser o principal ponto de centenas de cidades e povoados da Ucrânia durante anos, mesmo após o fim do comunismo.

Mas em novembro de 2013 começaram os protestos que acabariam derrubando o governo ucraniano favorável a Moscou, desencadeando a anexação da Criméia pela Rússia, a guerra no leste da Ucrânia e a corrida deslanchada pelas novas autoridades em Kiev para eliminar todos os vestígios do domínio soviético.

A estátua da Virgem Maria com quatro anjos substituiu a de Lênin em Hryhorivka, na Ucrânia
A estátua da Virgem Maria com quatro anjos substituiu a de Lênin em Hryhorivka, na Ucrânia - Oksana Parafeniuk/The Washington Post

As chamadas leis de “descomunização” adotadas desde então determinaram que dezenas de imagens, lemas e símbolos históricos fossem apagados de espaços públicos. Mas não especificaram o que deveria substituir as estátuas derrubadas.

Volodimir Viatrovitch, diretor do Instituto Ucraniano de Memória Nacional, que ajudou a redigir e implementar essas leis, diz que todas as estátuas conhecidas de Lênin antes presentes no território ucraniano sob controle do governo já foram retiradas –mais de 1.300 ao todo desde a aprovação das leis de descomunização, em 2015.

A única exceção são os monumentos próximos ao local do desastre nuclear de Tchernobil, de 1986.

Ele reconhece que o que resta são centenas de espaços e pedestais vazios, muitos deles nas praças centrais das cidades. No jargão interno do instituto, esses espaços vazios são conhecidos como “cepos”.

“A questão de como preencher esses espaços vai continuar a ser discutida pelos ucranianos durante algum tempo”, disse Viatrovitch. “Nossas visões sobre a história do nosso país ainda estão em formação.”

A busca ucraniana por novos símbolos para ocupar o lugar de Lênin reflete o esforço maior do país para realinhar-se com o Ocidente, em meio à turbulência econômica e a guerra contínua com separatistas no leste do país apoiados pela Rússia.

O movimento nacional acelerado para substituir a figura de Lênin atrai paralelos com outras discussões urgentes travadas pelo mundo afora sobre como lidar com a história e a memória, como a discussão sobre a preservação ou não de estátuas de figuras confederadas nos Estados Unidos ou sobre a reinterpretação do Dia de Colombo (feriado nacional nos EUA que marca a data da chegada de Colombo à América, em 12 de outubro de 1492) para que reconheça a dizimação dos indígenas americanos pelos colonos europeus.

Proponentes do governo dizem que a Ucrânia precisa se libertar do domínio russo, abraçando e desenvolvendo uma narrativa nacional e heróis próprios. Críticos dizem que o governo está cedendo poder demais a grupos nacionalistas de extrema direita e impondo uma ideologia oficial, exatamente como fizeram os soviéticos.

Uma pedra em homenagem ao poeta Taras Shevchenko foi colocada no local onde antes ficava uam estátua de Lênin em Ksaverivka, na Ucrânia
Uma pedra em homenagem ao poeta Taras Shevchenko foi colocada no local onde antes ficava uam estátua de Lênin em Ksaverivka, na Ucrânia - Oksana Parafeniuk/The Washington Post

“O que está sendo feito não é uma condenação da propaganda política, mas a troca de uma propaganda por outra”, disse Ievgeniia Moliar, de Kiev, ativista e historiadora da arte que critica a abordagem intransigente do governo em favor da descomunização.

Ela enxerga um paralelo nada elogioso com os novos monumentos que estão sendo erguidos nos mesmos lugares antes ocupados por Lênin, em alguns casos nos mesmos pedestais.

Na década de 1990, a Ucrânia, como boa parte da Europa central e do leste, já estava derrubando muitas de suas estátuas de Lênin e figuras soviéticas. Mas a campanha iniciada após a revolução de 2014 para retirar as que ainda restavam se fez notar por sua escala e velocidade determinadas por lei.

Moliar, que vem acompanhando as substituições das estátuas de Lênin em todo o país, diz que os gêneros mais comuns são religiosos e patrióticos.

Em Bila Tserkva, cidade da região central da Ucrânia, a empresária local Liudmila Drygalo levou as duas coisas em conta. Ela e outros ativistas criaram um memorial improvisado aos ucranianos mortos nos protestos de 2014 e na guerra no leste do país e ergueram uma cruz de madeira que ocupa o lugar de Lênin.

A praça sempre foi um ponto de encontro central, disse Drygalo. Ao trocar Lênin por uma cruz, “mantivemos essa tradição e simplesmente trocamos um símbolo por outro que seria evocativo para todos”.

Os habitantes locais dizem que ainda descrevem o local como “o lugar onde Lênin ficava”. No mês passado a prefeitura lançou um chamado por propostas para a reconstrução completa da praça.

Outra figura que vem sendo usada em muitos lugares para tomar o lugar de Lênin é a de Taras Shevchenko, o poeta nacional da Ucrânia. Segundo uma placa pregada a uma pedra colocada no lugar de um busto de Lênin no vilarejo de Ksaverivka, o poeta do século 19 passou por ali muitas vezes a caminho de Kiev.

“Nunca ouvi dizer que ele tivesse feito uma parada aqui”, disse Tatiana, diretora do centro comunitário que antes tinha uma estátua de  Lênin. “Ele apenas passou por aqui.”

O centro comunitário presidido por Tatiana –ela se negou a informar seu sobrenome, temendo represálias das autoridades— antes era chamado Casa da Cultura da Fazenda da Amizade Coletiva. As palavras “fazenda” e “coletiva” foram arrancadas da fachada no ano passado, mas continuam legíveis devido à diferença de cor da tinta embaixo delas.

Moliar argumenta que tentativas de retirar termos e símbolos comunistas frequentemente acabam por chamar mais atenção a eles. Em Kiev, um alto pedestal negro inscrito com a palava “Lênin” ainda domina uma das praças centrais da cidade. A figura no topo do pedestal foi derrubada nos protestos de 2013, mas o próprio pedestal de pedra se mostrou mais difícil de remover. Viatrovitch diz que ele deve acabar em um museu.

Enquanto substituem seus monumentos a Lênin, algumas cidades refletem sobre a fragilidade da política ucraniana e se resguardam contra possíveis riscos.

Cruz de madeira que substituiu estátua de Lênin em Bila Tserkva, na Ucrânia
Cruz de madeira que substituiu estátua de Lênin em Bila Tserkva, na Ucrânia - Oksana Parafeniuk/The Washington Post

Em Kodaky, ao sul de Kiev, um morador queria erigir um monumento às pessoas mortas nos protestos de 2014 em Kiev, descritas coletivamente com a Centena Celestial.

As autoridades da cidade decidiram em lugar disso erguer um monumento mais neutro “aos heróis da Ucrânia independente” no parque ao lado do lugar antes ocupado por Lênin.

“Nunca se sabe qual será o rumo da história futura”, explicou a secretária da prefeitura, Oksana Sivovna, 46. “Nunca se sabe quando será hora de derrubar a Centena Celestial.”

A estátua de Lênin de Kodaky foi vendida a colecionadores por US$5.000 (R$ 18.800), dinheiro que, segundo as autoridades, foi usado para trocar as janelas da escola. A única coisa que assinala o lugar antes ocupado pela estátua é um quadrado de paralelepípedos menos gastos que os outros em volta.

“Livrar-se de pedestais não muda nada”, disse Veronika Protsenko, moradora de 28 anos que trabalha com marketing e passava pelo local. “Se tivessem derrubado o pedestal, aumentado os salários e reajustado as aposentadorias, então sim isso teria significado alguma coisa.”

Kaharlik, cidade de 14 mil habitantes a uma hora ao sul de Kiev, ganhou algo mais criativo para substituir a figura de Lênin: um ovo gigante, com pintura de flores e uma janela, instalado por um empresário local na Páscoa de 2014.

A prefeitura criticou o empresário, dizendo que ele não queria pagar pela manutenção do ovo, que acabou sendo removido este ano, deixando para trás apenas um círculo de terra pelada no topo de uma elevação gramada.

Diante dele, um cartaz gigantesco dizendo “A Ucrânia acima de tudo” recobre um mosaico de foice e martelo na fachada da Casa de Cultura, erguida na era soviética.

O prefeito Okelsandr Paniuta prometeu que a Casa de Cultura será reformada em breve e que o mosaico será coberto. Uma fonte será instalada no local antes ocupado por Lênin.

Mas, segundo o vice-prefeito Oleh Purii, o legado soviético ainda levará décadas para ser eliminado de vez.

“Por quanto tempo Moisés liderou o povo israelita?”, ele perguntou. “Esse legado vai acabar daqui a 40 anos, quando todos que nasceram na URSS tiverem morrido.”

Tradução de Clara Allain

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