'Violência impressiona', diz brasileira integrante de missão expulsa da Nicarágua

Psicóloga que ajudou a apurar mortes por repressão do regime Ortega conta sua experiência no país

A psicóloga Catarina Pedroso, 31, que fez parte da equipe técnica do grupo que ajudou a investigar crimes na Nicarágua Divulgação/GIEI
A psicóloga Catarina Pedroso, 31, que fez parte da equipe técnica do grupo que ajudou a investigar crimes na Nicarágua - Divulgação/GIEI
São Paulo

Na semana passada, a brasileira Catarina Pedroso, 31, teve que sair às pressas da Nicarágua, onde passou os últimos seis meses.

Ela integrava uma das missões internacionais que investigavam violações de direitos humanos no país e foram expulsas pelo ditador Daniel Ortega no último dia 19.

Catarina, que é psicóloga e já trabalhava na área de direitos humanos, fez parte da equipe técnica que apoiava os quatro especialistas do GIEI (Grupo Interdisciplinar de Especialistas Independentes).

O grupo, criado após um acordo da OEA (Organização dos Estados Americanos) com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e o governo da Nicarágua, foi a campo investigar as mortes e outros episódios de violência no país no contexto dos protestos contra Ortega, que começaram em abril.

Na véspera da apresentação de seu relatório final, a equipe foi expulsa pelo Estado nicaraguense, com outros especialistas da CIDH que também estavam baseados no país, sob o argumento de que atuavam de forma “ingerencista”. 

O documento acabou sendo apresentado um dia depois do previsto, em Washington. 

“O maior prejuízo de termos sido expulsos foi não poder entregar o relatório às vítimas, em mãos”, diz Catarina.

Segundo o relatório, o regime cometeu crimes contra a humanidade, “particularmente assassinatos, privação arbitrária de liberdade e perseguição”.

O grupo documentou, em vídeos e fotos, a polícia usando armas de guerra contra manifestantes desarmados, além de paramilitares atuando na repressão a civis.

O trabalho de Catarina envolvia o contato direto com familiares das vítimas. Sem a colaboração do governo e do sistema judiciário, que foi considerado conivente, a equipe teve que apurar os fatos com a ajuda de ONGs locais e testemunhas —um desafio, pois as pessoas tinham medo de falar por terem sido ameaçadas, conta a brasileira.

Para ela, o que mais impressionou foi “a dimensão da violência” na vida da população. 

“O que é estarrecedor é como é um processo muito amplo, que atinge as pessoas de muitas formas. O nível de perseguição e de controle territorial do Estado, a vigilância pelo vizinho no bairro, a estigmatização. É algo que se faz presente o tempo todo”, diz.

Segundo ela, os funcionários públicos cumprem a função de vigiar a população e defender os interesses do partido de Ortega.

Ela também achou marcante a participação das instituições de saúde na repressão. “Nunca tinha visto isso, hospitais negando atendimento a manifestantes feridos, fazendo juízo de valor. Houve pessoas na porta implorando para serem atendidas”, relata.

Segundo a psicóloga, foi um desafio desenvolver o trabalho enquanto os episódios de violações de direitos continuavam acontecendo, ou seja, atuar “com a repressão em andamento”. 

Além disso, o grupo só podia investigar os crimes acontecidos de 18 de abril a 30 de maio, data acertada no acordo que criou o GIEI. Foram documentadas 109 mortes no período, sendo que  cem desses casos não chegaram à Justiça.

“Foi muito frustrante para as pessoas que estavam lá porque muita coisa grave aconteceu depois. Nossa expectativa é que possa haver um trabalho semelhante para outros períodos”, diz Catarina.

A CIDH estima que ao menos 325 pessoas foram mortas pela repressão, mais de 300 foram presas arbitrariamente e outras centenas foram despedidas de universidades e serviços públicos por serem consideradas de oposição. 

Além do trabalho de investigação, o GIEI elaborou um plano de reparação às vítimas e seus familiares.

Para isso, verificou-se quais foram as consequências dos crimes na vida das famílias e como elas gostariam de ser compensadas. 

“Pode ser a restituição do emprego, por exemplo, para um profissional de saúde demitido por atender feridos, ou voltar a estudar, para um estudante que teve o histórico escolar apagado por participar de um protesto, ou uma indenização para alguém que perdeu uma pessoa que sustentava a família”, exemplifica. 

“Também pediram reparações simbólicas, como considerar os dias de mais repressão como dias de memória.” 

O documento final não tem força de lei, mas traz recomendações ao estado nicaraguense para que “em algum momento possa ser usado”. “E é também um registro histórico, afirma Catarina. 

Para ela, o período no país foi de aprendizado. “Estar lá significou estar próxima dessa brutalidade toda, mas, por outro lado, tive contato com um povo que tem uma politização e uma força de luta impressionantes.” 

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