Descrição de chapéu The New York Times

Com reforma prisional nos EUA, condenado a perpétua por vender crack pode ser solto

Lei elimina disparidades nas sentenças de crimes envolvendo crack e cocaína

Alan Blinder e Jennifer Medina
The New York Times

Edward Douglas está cumprindo uma sentença de prisão perpétua por vender crack. Ele não pode ir à igreja com a mãe, que é pastora em Chicago. Não pode levar os netos ao parque. Sonha em voltar a trabalhar como mecânico. É uma possibilidade que parece cada vez mais provável.

Sob um projeto de lei de justiça criminal que recebeu aprovação final do Congresso dos Estados Unidos nesta quinta-feira (20), Douglas, 55, poderia ter sua sentença reduzida a menos tempo do que ele já passou na cadeia. Ele foi sentenciado em uma época em que os crimes relacionados ao crack (pasta de cocaína) acarretavam sentenças muito mais pesadas do que os crimes relacionados a cocaína em pó.

Essa disparidade, hoje vista amplamente como injustificável em termos científicos e discriminatória em termos raciais, gerou a adoção de regras impondo penas muito mais severas para crimes relacionados ao crack, mais comum em comunidades negras, do que para crimes relacionados à cocaína em pó, de uso mais comum entre os brancos.

Mesmo o juiz que presidiu ao caso de Douglas diz acreditar que a sentença compulsória de prisão perpétua foi injusta.

Dezenas de milhares de pessoas receberam sentenças rigorosas por efeito de normas definindo penas mínimas longas para os crimes relacionados ao crack. Mas o novo projeto de lei que pode ajudar Douglas demorou tanto a tramitar que relativamente poucas delas continuam encarceradas. Não mais de 2.660 prisioneiros federais serão elegíveis para redução de pena sob a nova lei, de acordo com a Comissão de Sentenciamento dos Estados Unidos. E quase 90% deles são negros, como Douglas.

Ainda que o caso dele sirva como ilustração dos efeitos perniciosos dessa disparidade, o fato de que Douglas continue na prisão também é prova das meias medidas, compromissos e diretivas burocráticas limitadas que resultaram dos 25 anos de esforço para corrigir o problema.

Nesta quinta-feira, as mudanças deram mais um passo para se tornarem lei, quando a Câmara dos Deputados, em uma de suas últimas votações do ano, aprovou por margem esmagadora a Lei do Primeiro Passo, 358-36. Aprovado também pelo Senado com maioria considerável nesta semana, o projeto de lei só aguarda a assinatura do presidente Donald Trump para se tornar lei.

Além dos 2.660 presidiários que podem ser afetados pela mudança com relação ao crack, uma mudança na forma pela qual o bom comportamento de um prisioneiro afeta a contagem de tempo servido pode resultar na libertação de mais alguns milhares de prisioneiros, do total de 180 mil presidiários que estão no sistema penitenciário federal.

No futuro, a lei significaria sentenças mais curtas em cerca de 2.000 casos ao ano, e ofereceria a 85% dos presidiários a oportunidade de reduzir mais as suas sentenças, por bom comportamento.

"Temos aqui uma questão M e M, monetária e moral", disse o deputado federal Doug Collins, republicano da Geórgia, um dos principais proponentes da medida entre os legisladores conservadores da Câmara. "Envolve usar melhor o dinheiro dos contribuintes e, do ponto de vista moral, dar uma segunda chance às pessoas".

Embora muitos dos proponentes elogiem a legislação, reconhecem que seu alcance é modesto. Alguns se queixaram por a medida excluir gente demais, entre as quais os condenados por crimes violentos, e criticaram compromissos como o que limita uma cláusula de "válvula de segurança", cujo objetivo era dar mais autonomia aos juízes no momento de sentenciar.

Mas o projeto de lei torna retroativos os efeitos de uma lei de 2010 que reduziu a disparidade na punição entre crimes relacionados a crack e crimes relacionados a cocaína em pó.

A disparidade da ordem de cem para um contra os crimes relacionados ao crack se tornou uma das políticas que caracterizaram a guerra contra as drogas em 1986, quando o Congresso adotou leis estipulando penas mínimas de prisão predeterminadas para crimes envolvendo determinadas quantidades de drogas.

Esse vínculo foi arbitrário desde o começo. Os legisladores inicialmente debateram uma disparidade de 50 para 1 -ou seja, a posse de cinco gramas de crack resultaria em pena equivalente à aplicada por posse de 250 gramas de cocaína em pó. Mas com fervoroso apoio bipartidário, eles optaram por estipular uma razão de cem para um, recordou mais tarde um então assessor do Congresso, "simplesmente para simbolizar que o Congresso estava redobrando sua seriedade".

Mesmo quando a epidemia do crack estava se alastrando, a disparidade já estava sendo criticada como injusta. Em 1995, a Comissão de Sentenciamento, que desenvolve diretrizes para uso pelos juízes quando eles estão determinando penas, disse que ela criava "resultados anômalos", e recomendou abandonar a prática. O Congresso recusou.

Quando começaram a circular projetos de lei para reduzir a disparidade, não se falava muito em aplicá-los de modo retroativo.

No Senado, um dos primeiros proponentes da ideia foi Jeff Sessions, republicano do Alabama que mais tarde se tornou o primeiro secretário da Justiça de Trump. Mas o projeto de Sessions não tornava a mudança retroativa, e os proponentes não consideravam que isso seria politicamente viável, disse Kara Gotsch, diretora de iniciativas estratégicas do Sentencing Project, uma organização que defende melhoras no sistema de Justiça criminal.

Em 2010, o Congresso chegou a acordo para reduzir a paridade a 18 para 1, ao aprovar a Lei de Sentenciamento Justo. Mas a mudança não seria retroativa.

Ainda assim, o ajuste nas diretrizes quanto a sentenças ajudou mais de 7.700 criminosos condenados por delitos relacionados à droga a reduzirem suas sentenças por em média 30 meses. Não havia diferença em termos de reincidência entre as pessoas que cumpriram suas sentenças originais e as que as tiveram reduzidas.

Mas tentativas de tornar a Lei de Sentenciamento Justo retroativa, mesmo para aqueles que ainda não tinham sido sentenciados quando ela entrou em vigor, causaram resistência. Sessions se opôs a isso - em parte porque "o equivalente a quatro brigadas do exército dos EUA seria libertado"  -, e o Departamento da Justiça inicialmente também rejeitou a ideia, no governo do presidente Barack Obama.

No entanto, Obama criticou as antigas regras para definir sentenças e em 2014 anunciou uma iniciativa de clemência para pessoas que poderiam ter recebido sentenças mais curtas se seus crimes tivessem acontecido mais tarde, e comutou as sentenças de quase 1,7 mil condenados. Cerca de dois terços deles haviam sido condenadas por tráfico de crack, de acordo com uma análise da Comissão de Sentenciamento, mas muitos outros sentenciados em casos de drogas - quase 2,6 mil - que cumpriam os critérios delineados pelo Departamento da Justiça não receberam clemência.

"Foi uma grande oportunidade perdida para corrigir a injustiça de não tornar retroativa a lei de 2010", disse Margaret Love, diretora executiva do Collateral Consequences Resource Center, uma organização de defesa de sentenciados, e antiga procuradora federal no departamento de perdões judiciais.

Douglas estava entre os condenados que não receberam clemência.

Ele foi condenado em 1989 por posse de maconha. Sua segunda condenação, em 1992, aconteceu porque ele estava visitando a casa de seu avô quando a polícia revistou o local; Douglas sabia que o avô vendia drogas, disse, e apanhou diversos pacotinhos de cocaína em pó para tentar salvá-lo de uma sentença mais dura. Mas o avô dele também terminou na penitenciária - onde ficou até morrer, em 2000. Douglas foi condenado por posse de cocaína.

Os dois casos foram vistos como tão irrelevantes que nas duas ocasiões ele foi sentenciado mas teve a sentença suspensa. Em 2001, porém, um conhecido ligou para comprar crack. Douglas lhe vendeu 140 gramas da droga e foi logo detido O comprador era informante federal.

Antes de sua terceira condenação, Douglas trabalhava como mecânico de vagões do metrô, na Chicago Transit Authority, um trabalho que ele diz ter aprendido a amar. Continuou a trabalhar mesmo depois da detenção, enquanto aguardava julgamento em liberdade.

Douglas foi considerado culpado, e sentenciado compulsoriamente a prisão perpétua porque era seu terceiro crime relacionado a drogas. "Ele foi atacado pelos dois lados, ficou na interseção de duas sentenças injustas", disse MiAngel Cody, cofundadora do Decarceration Collective, uma organização legal de Chicago, e advogada de Douglas. "As duas primeiras condenações não eram casos federais. Ele foi do zero à prisão perpétua em um instante".

Da maneira pela qual Cody interpreta a nova legislação, Douglas teria de ter vendido 280 gramas de crack, o dobro da quantidade que vendeu, para receber sentença compulsória de prisão perpétua. Se a nova lei entrar em vigor, ele teria de solicitar uma mudança de sentença a um juiz federal. Se a lei federal atual estivesse em vigor quando Douglas foi sentenciado, o provável é que ele recebesse sentença de 10 anos de prisão, de acordo com Cody. E Douglas já cumpriu mais de 15 anos.

O juiz original de seu caso, Michael McCuskey, se aposentou porque se cansou das sentenças compulsórias, disse. "Eu não sentenciaria Edward Douglas - e me lembro dele - a prisão perpétua de maneira alguma, se tivesse poder para isso", disse McCuskey. "Fiquei arrasado".

Tradução de PAULO MIGLIACCI

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.