Contrariando interesses dos EUA, McKinsey presta serviços a regimes autoritários

Estatais chinesas e ex-líder ucraniano pró-Rússia estão em lista de clientes da empresa americana de consultoria

O presidente deposto ucraniano Viktor Yanukovich, a quem a consultoria McKinsey prestou serviços - Alexander Nemenov - 11.mar.14/AFP
Walt Bogdanich e Michael Forsythe
The New York Times

O retiro da McKinsey & Co na China, este ano, foi memorável.

Centenas de consultores da empresa se divertiram no deserto, andando de camelo nas dunas e hospedando-se em tendas interligadas por tapetes vermelhos.

O local do retiro foi incomum: Kashgar, cidade do extremo oeste da China, situada na antiga Rota da Seda e que vive uma crise humanitária de grandes proporções.

A cerca de seis quilômetros do retiro onde os consultores da McKinsey discutiram seu trabalho –que inclui prestar assessoria a algumas das mais importantes estatais chinesas— foi erguido um grande campo de detenção que abriga milhares de chineses de etnia uigur.

O envolvimento da McKinsey com o governo chinês é muito mais profundo do que a inusitada escolha de local para destacar sua presença no país.

Nos últimos 25 anos, a empresa se somou a muitas outras grandes companhias americanas para ajudar a fortalecer a transição da China de país economicamente atrasado para a segunda maior economia mundial. Mas, à medida que o crescimento da China começou a representar um desafio grande à hegemonia dos EUA, Washington foi intensificando suas críticas a algumas das políticas seguidas por Pequim, incluindo as que a McKinsey vem ajudando a promover.

Uma das estatais que é cliente da McKinsey chegou a ajudar a construir as ilhas artificiais chinesas no mar do Sul da China, motivo de grande tensão militar com os Estados Unidos.

A verdade é que o papel desempenhado pela McKinsey na China é apenas um exemplo do trabalho extenso –e às vezes contencioso— da empresa pelo mundo afora, conforme revelou uma investigação do “New York Times” que incluiu entrevistas com 40 antigos e atuais funcionários da empresa, além de dezenas de seus clientes.

A icônica empresa americana vem ajudando a fortalecer governos autoritários e corruptos pelo mundo afora, às vezes de maneiras que contrariam os interesses dos Estados Unidos.

Seus clientes incluem a monarquia absoluta saudita, a Turquia sob a liderança autoritária do presidente Recep Tayyip Erdogan e governos corruptos em países como a África do Sul.

Na Ucrânia, a McKinsey e Paul Manafort –o diretor de campanha do presidente Donald Trump que seria condenado posteriormente por fraude financeira— foram pagos pelo mesmo oligarca para ajudar a melhorar a imagem de um candidato presidencial desacreditado, Viktor Yanukovich, de modo a retratá-lo como reformista.

Uma vez no poder, Yanukovich rechaçou o Ocidente, tomou o partido da Rússia e fugiu do país, acusado de roubar centenas de milhões de dólares.

Na Rússia, a McKinsey trabalhou com empresas ligadas ao Kremlin que foram submetidas a sanções por governos ocidentais –empresas que a McKinsey ajudou a promover ao longo de anos e que, em alguns casos, ela continua a assessorar.

Em agosto, o banco VEB –que pertence integralmente ao Estado russo, está estreitamente ligado à inteligência russa e está sob sanções dos EUA— contratou a McKinsey para desenvolver sua estratégia de negócios.

Não há indicativo de que a McKinsey tenha violado sanções americanas, que proíbem apenas certas transações com empresas e indivíduos específicos. Mas a dúvida maior é se a empresa, ao buscar oportunidades de trabalho legítimas no exterior, está ajudando a reforçar a liderança autocrática do presidente Vladimir Putin.

Na China, a McKinsey já assessorou pelo menos 22 das maiores estatais do país –segundo uma revisão de materiais em chinês realizada pelo “New York Times”, aquelas que executam algumas das iniciativas mais estratégicas e divisivas do governo.

A McKinsey defende sua atuação no mundo, dizendo que não aceita trabalhos que destoem de seus valores. Ela cita a mesma razão mencionada por outras companhias para explicar por que trabalha com países corruptos ou autoritários: diz que é mais fácil efetuar mudanças de dentro para fora.

“Desde 1926 a McKinsey vem buscando fazer uma diferença positiva nas empresas e comunidades em que nosso pessoal vive e trabalha”, disse a empresa em comunicado.

“Como muitas outras grandes corporações, incluindo nossos concorrentes, procuramos atuar em um ambiente geopolítico em transformação”, disse a empresa, “mas não apoiamos nem participamos de atividades políticas.”

Oligarcas e autocratas
O papel desempenhado pela McKinsey em revigorar a carreira política de Yanukovich foi perdido de vista no meio do clamor em torno da condenação do ex-presidente da campanha de Trump, Paul Manafort, por ter recebido milhões de dólares em segredo para ajudar o líder ucraniano a conquistar a Presidência em 2010.

Mas a McKinsey foi paga pelo mesmo oligarca que apoiou Manafort. E a empresa traçou um plano econômico que Yanukovich usou para desarmar seus críticos, apenas para descartar boa parte dele depois de tornar-se presidente.

Rinat Akhmetov, o oligarca mais rico do país, havia resgatado Yanukovych com uma estratégia que incluiu a contratação de duas consultorias muito diferentes: a de Manafort, cuja equipe ligada à Rússia trabalhara para ditadores que demonstravam pouco respeito pelos direitos humanos, e a McKinsey.

O trabalho de Manafort foi realizado em duas frentes: um esforço para abrandar a reputação de Yanukovych e de fortalecer seu Partido das Regiões, favorável à Rússia, facilitando sua ascensão à Presidência. A McKinsey ofereceu algo diferente: um plano econômico que Yanukovich poderia usar para retratar-se como reformador de mercado, voltado ao Ocidente.

Akhmetov pagou Manafort com transferências de dinheiro canalizadas por meio de uma empresa de fachada cipriota, como revelam documentos jurídicos.

Já a McKinsey foi paga por meio de uma fundação ucraniana financiada por Akhmetov e administrada por um ex-consultor da McKinsey agora residente em Moscou. Criada para promover reformas econômicas, a fundação também buscava divulgar o trabalho da McKinsey –e, por extensão, promover Yanukovich.

Em questão de alguns anos, a Ucrânia desabou economicamente, enquanto Yanukovich saqueava o país.
A capital não demorou a se voltar contra ele. Ele prometia havia muito tempo aproximar a Ucrânia do Ocidente, assinando acordos políticos e comerciais abrangentes com a União Europeia. Mas então mudou de ideia repentinamente e, em vez disso, se aliou à Rússia.

Manifestantes saíram às ruas durante meses, gritando palavras de ordem pró-Europa. O governo de Yanukovich reagiu com mão pesada. Mais de 80 manifestantes foram mortos antes de ele abandonar o país, em 2014. O caos não ficou apenas nisso. Furioso, Putin invadiu a Ucrânia, anexou a Crimeia e atiçou uma guerra que já fez mais de 10 mil mortos.

A McKinsey defendeu o papel que desempenhou na ascensão de Yanukovich, dizendo que a intenção da fundação de promover o desenvolvimento econômico da Ucrânia era séria e que ela contava com várias figuras ocidentais respeitadas em seu conselho de direção. A fundação foi fechada, sem ter alcançado seus objetivos, pouco antes de Yanukovich fugir para a Rússia. Nem Akhmetov nem a McKinsey quiserem revelar quanto dinheiro a empresa recebeu.

Construindo o sonho chinês
Uma grande obra de construção está parada e abandonada no meio da selva da Malásia.
A obra deveria ser uma ferrovia, parte da “nova Rota da Seda”, um empreendimento global de US$ 1 trilhão financiado por grandes empréstimos chineses, com obras geralmente construídas por firmas chinesas.

Uma dessas firmas é a enorme estatal China Communications Construction Co.
A China Communications exerceu um papel importante na construção de ilhas artificiais no mar do Sul da China, ilhas que vêm elevando a tensão entre a China e os Estados Unidos.

A subsidiária da empresa também construiu um novo porto para o Sri Lanka. Mas a dívida tornou-se tão onerosa que o governo do Sri Lanka foi obrigado a abrir mão do porto e entregar seu controle à China por 99 anos.

O que aconteceu com o Sri Lanka foi tão preocupante que o novo primeiro-ministro da Malásia, Mahathir Mohamad, temeu que a mesma coisa pudesse acontecer com ele. Por isso, em julho, suspendeu o projeto da ferrovia.

“Isto não é positivo para nós”, disse Mahathir em setembro. “Não há trabalho para trabalhadores malaios. Todos os trabalhadores são contratados da China. Dá para ver como é unilateral.”

Para a McKinsey, porém, era tudo menos unilateral.

Em 2015, quando a China Communications estava construindo as ilhas artificiais e ainda era sujeita a sanções do Banco Mundial, a McKinsey a tomou como cliente, passando a assessorá-la em questões estratégicas.

Meses mais tarde, conquistou outro contrato: este com o governo da Malásia, para rever a viabilidade da ferrovia.

Em um relatório confidencial em PowerPoint, a McKinsey disse às autoridades da Malásia que a ferrovia poderia incrementar o crescimento econômico em partes do país em até 1,5%. O então premiê Najib Razak, que desde então foi acusado criminalmente por corrupção, gostava de citar essa cifra.

Dominic Barton, na época sócio gerente da McKinsey, fez da iniciativa Belt and Road o tema de um discurso importante que proferiu em Pequim em 2015.

Em 2016 a cliente da McKinsey, a China Communications, ganhou o contrato de US$ 13 bilhões para a construção da ferrovia na Malásia. A McKinsey justificou o projeto numa época em que Najib estava sendo acusado de corrupção, em meio a protestos de rua devido ao desaparecimento de centenas de milhões de dólares de um fundo estatal de investimentos, e fortemente necessitado de ajuda financeira de um credor externo como a China.

Mahathir disse a jornalistas malaios que a China Communications, que ganhou um contrato para a construção da rodovia sem passar por nenhuma licitação, pode ter superfaturado os custos para ajudar Najib e seus aliados a injetar dinheiro extra no fundo de investimento, para repor os valores faltantes.

A McKinsey diz que não tem conhecimento de nenhum conluio entre a China e Najib. A empresa disse ainda que seus “rigorosos procedimentos e políticas internas” possibilitam que ela “ofereça uma visão independente” para ajudar cada cliente “a promover seus próprios objetivos estratégicos”.

Mas, para Bridget Welsh, professora da Universidade John Cabot, em Roma, especializada na política da Malásia, o pano de fundo político –um governo que enfrentava acusações de corrupção deslavada e a perspectiva de que Najib pudesse recorrer à China em busca de recursos para ocultar suas ações— deveria ter sido óbvio para a McKinsey na época.

“A McKinsey optou por colaborar com atores profundamente corrompidos”, disse Welsh a respeito da McKinsey.

Robert G. Berschinski, funcionário do Departamento de Estado na administração de Obama, disse que empresários e políticos frequentemente acreditam que engajar-se ativamente com governos autoritários pode levar a reformas econômicas, que, por sua vez, conduzirão a reformas políticas.

“Mas está ficando cada vez mais claro –como evidenciam a Rússia, China e Arábia Saudita-- que essa ideia é infundada”, ele disse.

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