Descrição de chapéu Coreia do Norte

Coreia do Norte testa mudanças na economia para não mudar na política

Em dez dias, Folha foi levada a escolas, hospitais, circo, museus, metrô, residência, fábricas e fazenda

Ana Estela de Sousa Pinto
Pyongyang, Kaesong e Hyangsan

Só há dois voos listados no painel do aeroporto internacional de Pyongyang, capital da Coreia do Norte, numa terça-feira de outubro. Não é falha de informática. É o sinal, já na porta de entrada, de que esse é um país insulado.

Como todo estrangeiro, a Folha foi sempre acompanhada de dois guias, que decidiam aonde ir e intermediavam as conversas. Durante dez dias, a Folha foi levada a escolas, hospitais, residência, fábricas e cooperativa agrícola considerados modelo pelo governo, além de circo, museus, metrô, templo budista e fronteira.

Não houve nenhuma ameaça, implícita ou explícita, nem recomendação para que não fossem tiradas fotos em regiões mais pobres do país. "Ainda temos muito o que desenvolver, muito o que construir, mas estamos fazendo pouco a pouco, com nossas próprias forças", afirma Ko Kun-chol, representante para América Latina do Comitê Coreano de Intercâmbio Cultural com o Exterior que acompanhou a Folha durante os dez dias.

Mas a passagem pelos locais ainda carentes de desenvolvimento foi sempre de carro e de longe, e mercados, ônibus e locais frequentados pela população no dia a dia ficaram fora do itinerário.

Na bem cuidada capital, poucas vezes o trajeto se desviou das avenidas principais, imaculadamente limpas. A presença de guias, apresentações formais e números ensaiados deixa claro que estamos vendo apenas o que foi preparado para vermos.

"Há simulação, mas não estão todos simulando. O que você vê é gente real, vida real, mas você nunca vê tudo. A Coreia do Norte de verdade não existe, mas qual país de verdade existe?", comenta a respeito o executivo britânico Simon Cockerell, que já esteve no país 174 vezes desde 2002.

Por trás das fachadas modelo há milhões de pessoas que tentam levar suas vidas e não estão pensando em política o tempo todo, diz ele.

"O cidadão médio norte-coreano está preocupado com a educação de seus filhos, com a saúde de seus pais, com as fofocas sobre os vizinhos. Quer ganhar mais, melhorar de vida, ter seu trabalho reconhecido, namorar. Suas crenças podem ser diferentes das nossas, mas suas preocupações são as mesmas."

Mais ou menos como no horizonte da capital, em que arranha-céus de ar futurista se destacam, perfeitos para serem fotografados de longe. De perto, o acabamento mais rústico os recoloca no tempo presente.

Avenidas largas e sem tráfego, palácios de granito polido, hospitais com mais médicos que pacientes, trenzinhos elétricos que carregam crianças pelo jardim do orfanato: sobra estrutura em alguns pontos de Pyongyang.

E há talento de sobra para mostrar aos estrangeiros. Crianças tão jovens quanto de quatro anos desenham, dançam e tocam instrumentos com destreza. É missão dos professores “identificar a aptidão de cada criança e desenvolvê-la”, nas palavras de uma vice-diretora escolar.

Nenhuma visita começa sem um discurso em frente à imagem de ao menos um dos ditadores da dinastia Kim, apresentados como “querido líder presidente Kim Il-sung” (1912-1994), “grande líder general Kim Jong-il” (1941-2011) e “supremo líder marechal Kim Jong-un” (nascido em 1983 e à frente do país há sete anos).

Os guias mencionam quantas vezes cada um visitou o local e relatam como escolheram pessoalmente o terreno e deram instruções detalhadas sobre a arquitetura, a cor das paredes e até mesmo a forma como as crianças devem fazer fila para se servir no orfanato. 

Fazer fila é algo que os norte-coreanos aprendem desde cedo e mantêm por toda a vida. Grupos de adultos uniformizados são vistos com frequência caminhando de três em três, em bloco. Ordem, asseio e disciplina são evidentes nas ruas principais.

As crianças são ensinadas ainda a adorar os líderes, chamados de “abeoji” (pai, pronuncia-se “abôdjí”), termo também usado para se referir a Deus. No jardim da infância, decoram suas biografias e cantam músicas sobre o amor deles por “seus filhos”. 

Pela manhã, alto-falantes exortam a população a trabalhar duro pelo progresso do país, constrangido por sanções econômicas de várias origens e amplitudes. 

No metrô, garotas uniformizadas tocam instrumentos e fazem coreografias para “animar os trabalhadores”. 

 

O partido pede empenho das três armas de seu símbolo: foice, martelo e pincel —agricultores, operários e intelectuais.

Sobre os cerca de 20% que vivem nas zonas rurais recai o principal peso da pobreza. Com máquinas e fertilizantes escassos, tentam arrancar de apenas 15% do território do país os 5,5 milhões de t³ de grãos anuais necessários. Em Kaesong, ao sul do país, estudantes secundários ajudavam, sob chuva forte, na colheita de arroz. Num domingo, o dia oficial de descanso.

Na indústria, há maratonas para cumprir metas. Na fábrica de fios de seda Kim Jong-suk, elas duram 70 dias seguidos. Para facilitar a presença das operárias, há um alojamento para 320 pessoas. 

A guia mostra um dos 40 quartos para 8 operárias cada, a cozinha de um dos andares e, no térreo, piscina com quatro raias e um spa.

Dos cientistas e técnicos, o regime pede sementes resistentes ao clima, energia alternativa e novas formas de fazer aço e plástico —para contornar a falta de petróleo.

Ao mesmo tempo, Kim Jong-un parece favorecer algum grau de distensão econômica, com mais liberdade para mercado e mais autonomia para gerentes estatais.

Seus passos são lentos, graduais e tentam manter seguro o próprio regime. Mas mudanças já são notadas por observadores externos e pelos próprios norte-coreanos. Se a dinastia Kim sobreviverá a elas é uma pergunta que deve levar alguns anos para ser respondida.

 

Folha leva à Coreia do Norte perguntas de leitores

"O que você gostaria de perguntar a um norte-coreano, se tivesse a oportunidade de visitar esse que é um dos países mais fechados do mundo?" foi a questão feita pela Folha a seus leitores antes de embarcar.

Foram enviadas mais de 70 questões, parte delas respondidas durante a viagem, no final de outubro.

Muito foi visto e ouvido, mas o número de vozes e pontos de vista ausentes deixa sempre muitas questões em aberto.

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