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Crianças venezuelanas sofrem com desnutrição e falta de medicamentos

Médicos dizem que dados oficiais não capturam aumento da mortalidade infantil e de epidemias

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Menina espera para comer em refeitório no bairro La Vega, em Caracas - Ariana Cubillos - 26.ago.18/Associated Press
Caracas

Pediatras de diversos hospitais, públicos e privados, da Venezuela estão recolhendo dados por conta própria sobre o que ocorre com as crianças nas instituições em que trabalham.

Isso porque, segundo eles, o Instituto Nacional de Estatísticas não é mais confiável e divulga números que subestimam a triste realidade do país.

Em especial, faltam dados sobre o que acontece com as crianças: números de desnutrição, epidemias, mortalidade e nascimentos prematuros vindos da base oficial “não correspondem ao que vemos entrar e sair dos nossos hospitais todos os dias”, diz à Folha a infectologista Tatiana Drummond, que trabalha no Hospital Universitário de Caracas.

Ela preferiu atender a reportagem na clínica particular em que atua, para não levantar suspeitas. Afinal, hospitais públicos e universitários são vigiados pela polícia ou pela Guarda Nacional Bolivariana e é muito difícil ter acesso a eles sem ser questionada ou impedida de entrar.

Ela e outros médicos ouvidos pela Folha contam que criaram uma rede de WhatsApp, em que trocam listas de remédios necessários, tentam conseguir informações sobre onde há anestesia ou um centro cirúrgico que atenda suas necessidades para casos específicos e promovem um intercâmbio para tentar se ajudar.

“A crise está destruindo uma geração e estamos fazendo de tudo para evitar essa tragédia. O lado positivo de tudo isso é que está crescendo a solidariedade entre os médicos.” Ela, por exemplo, é uma das que reúne informações extraoficiais sobre a situação da saúde infantil no país.

E seus números são assustadores. Apenas no Hospital Universitário de Caracas, que já foi referência na área pediátrica na região andina, a situação começou a se deteriorar em 2015, quando o governo apertou o cerco após o acirramento da crise, das manifestações e da repressão de 2014.

“Desde então, temos lacunas graves no calendário de vacinações, que faz com que os pais tenham de peregrinar por várias clínicas, muitas vezes desistindo, e as crianças ficam com a tabela de vacinação básica incompleta.”

O problema maior apontado pelos médicos ouvidos pela Folha é a desnutrição. “Uma criança desnutrida não se desenvolve, é frágil e vulnerável a doenças, e, se sobrevive, terá pouca possibilidade de aprender, de crescer até o tamanho normal que se espera, estará exposta a várias enfermidades ao longo da vida”, afirma Franco Sorge, pediatra que se aposentou por não aguentar “olhar uma criança doente, saber que posso salvá-la, mas, como não tenho recursos, tenho que vê-la morrer”.

Tatiana mostra os números que recolhe sobre a desnutrição. “Aqui em Caracas, em 2015, a desnutrição atingia 13% das crianças. Em 2016, foi para 17%, em 2018, para 21%. E veja que em Caracas ainda temos melhores recursos que no interior do país, onde as cifras são muito mais altas.”

E acrescenta: “A longo prazo, estamos criando pessoas que, se chegarem à vida adulta, serão uma geração mais fraca, mais magra, mais baixa e com menos capacidade mental que as anteriores.”

Os números de mortalidade infantil de Caracas são igualmente terríveis. Em 2016, das crianças internadas em hospitais públicos da cidade com algum problema, 1% morreu. Em 2017, esse número saltou para 4,3%, e, em 2018, para 5%, segundo os dados recolhidos por esses médicos. “A progressão é assustadora, está crescendo muito rápido, e nos faltam desde coisas básicas como remédios e anestesia até meios de alimentar as crianças”, diz Tatiana.

“Ainda não estamos na situação da África subsaariana porque partimos de um país que, no passado, tinha uma ótima estrutura médico-hospitalar e eles, não. Porém, estamos indo por este caminho.”

O crescimento da solidariedade entre médicos, educadores e pais, de fato, é algo que se vê em vários bairros de Caracas. Entre os mais ricos, mesmo hoje depauperados, é comum encontrar tentativas de juntar dinheiro ou alimentos para entregar a instituições de caridade.

No Petare, um dos bairros mais castigados da capital venezuelana, há vários refeitórios, alguns ligados a políticos de oposição, que realizam coletas, outros ligados a igrejas e outros que são levados adiante por cidadãos preocupados.

No refeitório El Carmen, crianças menores ficam em mesa à parte e disputam copos coloridos - Sylvia Colombo/Folhapress

Um deles é o Comedor del Carmen, que funciona no anexo de uma igreja, mas gerido por moradores locais. Oferece duas levas de refeições para crianças por dia, uma antes e outra depois da escola.

“Eu apenas exijo que os pais coloquem a criança na escola, porque estamos alimentando-as para que aprendam e se desenvolvam como adultos, não apenas distribuindo comida”, conta a cozinheira e chefe do local, Betty Díaz.

Quando a Folha visitou o refeitório, já era período de férias escolares, no início de dezembro, e ainda assim as crianças iam uma vez por dia, pelo menos, para comer, “porque na minha casa não tem nada”, diz Willy, 11, que liderava a escadinha de irmãos, tímidos, de mãos dadas. Além dele, estavam Brian, 7, e Amanda, 5.

Antonio, 14, músico da orquestra juvenil, no refeitório Comedor del Carmen, no bairro Petare, em Caraca - Sylvia Colombo/Folhapress

Outro chegou trazido pela mãe às pressas. Antonio, 14, tinha um ensaio para a apresentação da orquestra juvenil. “Ele tem três horas de aula de música todo dia. Se não come, não aguenta, chora, me liga para ir buscá-lo”, conta Mariela, 38, sua mãe. Ele estava excitado. “É o concerto de fim de ano, e me promoveram a primeiro flautista”, disse.

Na Venezuela, ainda é grande o número de crianças que frequentam o tradicional sistema de orquestras fundado pelo maestro José Antonio Abreu (1939-2018) —de onde surgiu, por exemplo, o renomado maestro Gustavo Dudamel—, mas a rede também sofre com cortes de verbas e a falta de condições dos alunos em frequentá-los.

Como manter o refeitório ativo é um desafio. O vereador local ajuda, assim como os moradores. “Quem tem algo sobrando, ou algo da cesta básica que não vai usar, traz, quem vê carne em promoção, avisa, e eu saio correndo pra comprar”, conta Betty. 

Muitos tentam transformar-se em ONGs para buscar apoio e doações fora do país, algo proibido pelo regime.

O contraste entre ir a um local como o Petare ou a outro subúrbio pobre da capital e depois ver as propagandas do governo na TV e os cartazes espalhados por Caracas é imenso. 

Nas peças publicitárias, Maduro aparece anunciando planos de distribuição de cestas básicas, muitos deles vinculados ao fato de os beneficiários terem de fazer o “carnê da pátria”, documento de “fidelidade ao governo”.

No bairro da Candelária, num sábado de manhã, havia fila em uma distribuição de cestas. “Eles dizem que é para um mês, mas na minha casa, dá para uma semana no máximo, tenho três crianças”, diz uma mulher de 43 anos. “Meu marido tem que completar fazendo mil serviços. Mas venho buscar, claro, alguma coisa é sempre alguma coisa.”

Outra mulher reclama com o distribuidor: “Na minha cesta não veio azeite, tinha azeite nas outras”. O distribuidor apenas levanta os braços: “Acabou, senhora, desculpe, melhor tentar chegar mais cedo da próxima vez”.

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