Falta de maconha causa longas filas no Canadá e nutre mercado ilegal

Sem produção suficiente, lojas de maconha fecham três dias por semana

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Montreal (Canadá)

Há dois meses, uma loja de fachada discreta apresenta movimento especialmente intenso mesmo diante do frenesi da principal rua comercial de Montréal, no Canadá.

Do lado de dentro, acessível apenas para maiores de 18 anos mediante apresentação de documento, prateleiras vazias são sinais do sucesso.

“Eu gostaria de um pouco de sativa, por favor”, pede um cliente no balcão. “Está esgotada. Sinto muito. Temos apenas um pouco de índica”, responde o jovem vendedor.

A expressão do cliente é de desapontamento, mas ele não terá dificuldade em encontrar o que procura em outro lugar. 

Desde 17 de outubro é possível comprar maconha legalmente no Canadá. Para fins medicinais, sua produção e comércio são permitidas desde 2001 no país.

Mas, a despeito da novidade, o mercado ilegal de Montréal segue seu curso, movido principalmente a vendas online e entregas em domicílio.

A designer brasileira Jessica Maciel, 26, vive há quatro anos em Montréal e percebeu uma mudança na cidade nos últimos dois meses. “Aqui virou uma espécie de Amsterdã, que as pessoas visitam para fumar maconha. Antes de outubro, Montréal tinha seis atrações turísticas. Agora, tem sete”, brinca.

Com isso, hoje existe até a oferta de passeios turísticos por pontos da cidade onde é possível fumar —mesmo sem origem comprovada.

 

O comércio legal de maconha para fins recreativos foi uma das promessas de campanha do primeiro-ministro liberal Justin Trudeau, eleito em 2015.

Pesquisas apontaram que 70% dos canadenses declaram aceitar (24%) ou apoiar a medida (46%).

Dados do governo revelaram que, em 2017, 4,9 milhões de canadenses usaram cânabis, gastando US$ 4,2 bilhões (ou cerca de R$ 16 bilhões) em maconha --90% deste montante no mercado ilegal.

Homem fuma enquanto espera na fila para comprar maconha em uma loja de Montréal, no Canadá - Christinne Muschi-17.out.2018/Reuters

Com a legalização, a estimativa era a de converter para as transações oficiais 30% destes usuários. O restante abandonaria o mercado ilegal nos anos consecutivos.

As projeções, no entanto, não passaram no teste da realidade, e a maconha esgotou logo nos primeiros dias. Na província de Ontário, os sites de venda receberam 100 mil pedidos em apenas 24 horas. 

Em Montréal, na província do Québec, o comércio fica a cargo de um braço do mesmo órgão do governo que controla a venda de álcool, a SQDC (Sociedade Quebeque de Cânabis, na sigla em francês).

A solução da SQDC para o impasse da falta de produtos foi fechar as portas das lojas três dias por semana.

“No primeiro mês, os produtores licenciados nos entregaram só 40% do que previa o contrato”, explica Mathieu Gaudreault, porta-voz da SQDC. “O Quebec havia previsto a compra de 60 toneladas de cânabis ao longo do primeiro ano de venda legal de maconha. Mas ficou claro que não há produção suficiente.”

Consumidores ouvidos pela Folha avaliaram a maconha legal como de preço competitivo e qualidade tão boa ou melhor que a ofertada no mercado ilegal. 

A SQDC detém o monopólio do varejo no Québec e esclarece que sua função “não é obter lucro com a venda de cânabis”, como ocorre com o setor em outros territórios do Canadá e dos EUA, onde operam empresas de capital aberto. Há casos de fusões e aquisições milionárias, e gigantes do setor do álcool e do tabaco têm investido nessas novas empresas.

A expressividade de algumas negociações financeiras em torno da cânabis já foi até mesmo interpretada como sinal prematuro de uma nova bolha especulativa: a bolha verde.

Estimativas apontam que o mercado de maconha para fins recreativos no Canadá deve movimentar cerca de US$ 5 bilhões em 2020, superando o de bebidas destiladas (US$ 3,8 bilhões em 2017) e encostando no de vinhos (US$ 5,2 bilhões).

Homem mostra a maconha que comprou legalmente em loja de Montréal, no Canadá - Christinne Muschi-17.out.2018/Reuters

Nas lojas da SDQC, a disputa por produtos começa na quinta-feira, primeiro dia de abertura das portas na semana, e recebe, segundo vendedores, cerca de 5.000 visitantes.

Aos sábados e domingos, já com as prateleiras esvaziadas, o movimento cai.

Do lado de dentro, painéis e livretos explicam as variações da planta (sativa, índica e híbrida), as diferentes concentrações dos princípios ativos e os formatos disponíveis (flores, óleo, spray e pílulas).

Explicam ainda o tempo médio de duração dos efeitos e informa sobre os riscos do consumo e a proibição de dirigir sob seu efeito.

Pesquisa da Universidade de Halifax apontou que 58% dos canadenses temem que a legalização amplie o acesso à maconha para crianças e adolescentes. E o governo do Québec já anunciou que vai aumentar de 18 para 21 anos a idade mínima para essa compra.

Um torneiro mecânico de 24 anos que não quis se identificar contou à Folha que adquiriu sua primeira maconha numa loja do governo. “Antes, tinha receio de ser pego pela polícia”, admite.

A ampliação do acesso é um fantasma que ronda os canadenses. E campanhas de saúde pública sobre o tema são mais frequentes.

O ministro Bill Blair, um ex-policial que cuida de fronteiras e redução do crime, tem reiterado que o objetivo da medida é retirar recursos das organizações criminosas. “Maconha não mata, mas traficantes de maconha podem matar”, declarou em recente debate sobre o tema.

Os próprios consumidores ainda seguem desconfiados. Nenhuma das 15 pessoas abordadas pela Folha na saída de suas compras da loja da SQDC em Montréal quis revelar o nome, ainda que concedessem entrevista.

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