Mulheres diplomatas relatam discriminação e dificuldade de avançar na carreira

Documentário traz depoimentos e lembra da primeira brasileira a ingressar no Itamaraty, há cem anos

Maria José Rebello, primeira mulher diplomata, na prova de admissão para o Itamaraty em 1918
Maria José Rebello, primeira mulher diplomata, na prova de admissão para o Itamaraty em 1918 - Divulgação
Flávia Mantovani
São Paulo

A primeira embaixadora brasileira, Odette de Carvalho e Souza, nomeada em 1956, não era chamada pelo nome do cargo, mas de "dona Odette". Outra pioneira no posto, Thereza Quintella, tinha que assinar os convites como “senhora ministro” e era chamada de embaixatriz (esposa de embaixador). “Eu dizia: por favor, me chame Thereza ou de embaixadora. Não quero ser embaixatriz”, conta.

Quintella, 80, foi a primeira mulher a dirigir o Instituto Rio Branco (a escola que forma os diplomatas brasileiros) e é uma das entrevistadas pelo documentário “Exteriores - Mulheres Brasileiras na Diplomacia”, que aborda o tema quando se completam cem anos da admissão da primeira diplomata no Itamaraty.

Lançada nesta terça-feira (11) em São Paulo, a produção independente —bancada via financiamento coletivo e realizada por uma equipe formada principalmente por mulheres— costura depoimentos de diplomatas de diferentes gerações sobre a experiência de ser mulher na diplomacia e as dificuldades que enfrentaram e ainda enfrentam.

A primeira a quebrar essas barreiras foi Maria José Rebello, primeira diplomata e primeira mulher servidora pública concursada do país, que ingressou no Itamaraty em 1918, após passar em primeiro lugar na prova.

O discurso do então chanceler Nilo Peçanha ao anunciar sua aceitação revela o pensamento da época: "Melhor seria, certamente, para o seu prestígio que continuasse à direção do lar, tais são os desenganos da vida pública, mas não há como recusar a sua aspiração”, disse.

Depois disso, as mulheres foram proibidas de entrar para a diplomacia durante 16 anos, de 1938 a 1954. Foi neste ano que Thereza Quintella entrou para a diplomacia. “Fiquei sozinha por seis anos e meio até que viesse uma nova embaixadora. Eu era uma espécie de troféu”, conta.

A embaixadora Irene Vida Gala, que entrou para o Itamaraty em 1985, durante entrevista para o documentário  “Exteriores - Mulheres Brasileiras na Diplomacia”
A embaixadora Irene Vida Gala durante entrevista para o documentário - Divulgação

Os números apresentados na produção mostram que ainda se trata de um universo dominado por homens: as mulheres são apenas 23% dos diplomatas e 9,8% dos chefes de Embaixada no exterior.

Muitas delas estão em países de menos visibilidade. Na América do Sul, por exemplo, prioridade da política externa, nenhuma embaixada é chefiada por mulher. A chefia de gabinete de um ministro das Relações Exteriores foi assumida por uma mulher pela primeira vez em 2005 —Maria Nazareth Farani  ocupou o posto quando o ministro era Celso Amorim, até 2008.

Nos depoimentos, as entrevistadas dizem que precisam trabalhar mais para mostrar seu valor, que já sentiram necessidade de “se masculinizar” e ser “mais duras” para serem aceitas e que existe uma dificuldade de obter promoção para postos de mais relevância.

“É muito difícil ver mulheres nesses cargos de maior visibilidade. Nas promoções e remoções, existe uma diferenciação. E há uma fama de que é uma carreira muito difícil para a mulher por causa da família, das viagens”, disse à Folha Débora Baremboim-Salej, chefe do escritório de Representação do Ministério das Relações Exteriores em São Paulo.

A embaixadora, que está no Itamaraty desde 1979, conta que “carregava as filhas pelo mundo”. Após se casar com um colega de carreira, teve que abrir mão de 40% do salário para poder trabalhar no mesmo país que o marido. “O argumento era que um casal não podia ganhar mais do que o chefe, que era o embaixador, o que é um absurdo, porque eram duas pessoas trabalhando”, diz.  

De 1969 até 1985, era proibido que casais servissem juntos no exterior.

Para a embaixadora Irene Vida Gala, que está na carreira diplomática desde 1985, uma das formas de contornar o problema da falta de acesso das mulheres aos postos mais elevados seria com políticas afirmativas, como cotas ou simplesmente a divulgação de todas as vagas abertas para cargos no ministério e no exterior.

“Atualmente esses cargos são preenchidos só pela escolha dos chefes, que em geral estão rodeados de assessores homens. É um clube masculino ao qual as mulheres não têm acesso, por isso elas não ascendem nunca. Se qualquer um puder se candidatar, elas poderão concorrer e se mostrar”, afirma.

Gala, que serviu principalmente na África e se tornou referência no assunto, acredita que esse tipo de medida pode evitar a perda de novos talentos. “Eu não precisei de cotas, mas outras mulheres que poderiam ter chegado lá ficaram pelo caminho”, diz.

O documentário trata das questões específicas relacionadas às mulheres negras e às lésbicas na instituição. “Há muito poucos negros em geral diplomatas brasileiros. E se nós falarmos de mulheres negras é mais difícil ainda”, diz a diplomata Marise Ribeiro Nogueira, lembrando que houve uma época em que candidatos eram reprovados nas entrevistas por serem negros.

Outra cena mostra uma reunião do Grupo de Mulheres Diplomatas, coletivo que obteve conquistas como a criação de uma sala de amamentação e de um comitê de gênero e raça no ministério.

“Gostei de ver que elas se uniram para lutar contra as dificuldades”, disse Letícia Soares, 19, estudante de relações internacionais, após assistir ao filme. “Desde os 14 anos quero ser diplomata. Comecei a pensar se vou dar conta de conciliar com a família porque sonho em ser mãe, mas também não quero abrir mão da carreira.”

A diretora do documentário, Ivana Diniz, diz que quis mostrar que as barreiras enfrentadas pelas diplomatas atingem também outras mulheres: “Não queria que ficasse naquele nicho. A gente sabe que o que elas vivem é vivenciado por várias outras profissionais em todos os setores.”

“A nossa história não é diferente da de outras mulheres que ousam penetrar no ambiente masculino”, acrescenta Thereza Quintella. “É difícil, cheia de atitudes negativas, discriminação. Não foi uma curva ascendente, foi uma luta constante que não está totalmente vencida, pois igualdade ainda não há.”

O filme entra em cartaz em fevereiro no CineSesc e depois ficará disponível gratuitamente na internet.

Exteriores - Mulheres Brasileiras na Diplomacia
​Brasil, 2018. Direção: Ivana Diniz. Classificação: livre. Em cartaz em fevereiro de 2019 no Cinesesc  

Erramos: o texto foi alterado

Diferentemente do informado, Maria Nazareth Farani não foi a única mulher na chefia de gabinete de um ministro das Relações Exteriores. A diplomata Fátima Ishitani foi chefe de gabinete do ministro Antonio Patriota de 2011 a 2013. A informação foi corrigida
 

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