Projeto em SP transforma mulheres comuns em promotoras de direitos

Curso gratuito que ensina caminhos para acessar justiça já formou 5.000 participantes em 24 anos

Amelinha Teles (de cachecol vermelho) rodeada por mulheres que participaram do projeto das Promotoras Legais Populares

Amelinha Teles (de cachecol vermelho) rodeada por mulheres que participaram do projeto das Promotoras Legais Populares Patricia Stavis/Folhapress

São Paulo

Sem as mulheres os direitos não são humanos, afirma o pôster na entrada da casa cheia de plantas, cartazes e grafites na sede da União de Mulheres de São Paulo. Há mais de 20 anos, a organização feminista mantém um projeto que propõe aplicar esse lema na prática, transformando mulheres comuns em promotoras de seus direitos.

Todo sábado, durante dez meses, um grupo com participantes de regiões, classes sociais e idades variadas se reúne para aprender sobre a Constituição Federal, a Lei Maria da Penha, saúde, sexualidade, legislação trabalhista e previdenciária e o sistema internacional de direitos humanos, entre outros temas. 

São as PLPs, como elas se denominam —sigla para Promotoras Legais Populares, nomenclatura usada em diferentes países latino-americanos para mulheres que passam por esse tipo de formação. 

Foram mais de 5.000 alunas desde 1995, quando o projeto começou. Nos últimos anos, os encontros têm ocorrido na Câmara Municipal de São Paulo. 

“A gente faz em um espaço público para dar visibilidade às mulheres e para que elas possam aprender a usar o microfone, a fazer sua voz ser ouvida”, afirma Maria Amélia Teles, uma das coordenadoras.

Amelinha Teles, como é conhecida, defende os direitos das mulheres há décadas. 

Enquanto lembra de algumas leis que vigoravam havia não muito tempo no Brasil — o homem podia anular o casamento se a mulher não fosse virgem, o pai podia deserdar uma “filha desonesta” e a mulher tinha que pedir autorização ao marido para trabalhar—, ela conta que o projeto das PLPs surgiu quatro anos após a Constituição de 1988. 

“Na Constituinte, foi muito forte a atuação dos movimentos feministas para garantir a igualdade jurídica entre homens e mulheres. E a gente conseguiu essa igualdade, ainda que formal. Mas percebemos que poucas brasileiras conheciam os direitos que tinham conquistado”, diz.

Começou, então, o curso de São Paulo, em 1992. Gratuito, é conduzido por profissionais voluntárias. O lanche é bancado pelas alunas que podem contribuir, e o dinheiro para a formatura é arrecadado em uma festa julina promovida por elas. Não há outras fontes de financiamento. 

Para 2019, as inscrições se encerraram e superaram 800. É feito um sorteio para selecionar, em média, 150 participantes, das quais apenas cerca de 40 costumam ir até o fim. 

O sorteio considera os fatores raça e idade, para termos um grupo representativo da população feminina. São os únicos critérios”, diz Marília Kayano. “O perfil é o mais variado possível. Temos de meninas de 15 anos a mulheres de 85, brancas, negras, amarelas, lésbicas e héteros, mães e não mães”, afirma. 

A ideia é que as participantes se tornem multiplicadoras do conhecimento que adquirem, além de estarem aptas a acolher outras mulheres que precisam de auxílio. “É difícil para uma mulher em situação de violência saber para onde ir, o que fazer. As PLPs oferecem uma escuta qualificada para ajudar a encontrar uma solução”, diz Marília. 

Marilia Kayano, Teresinha Santos, Beatriz Coppi, Kaká Palacio Cunha, Amelinha Teles, Glaucia Matos Adeniké, Amelinha Teles, Rosely B. Santiago, Flavia Ribeiro, promotoras legais populares (PLP), que há mais de 20 anos promovem curso gratuito para mulheres voltado para ensinar seus direitos
Marilia Kayano, Teresinha Santos, Beatriz Coppi, Kaká Palacio Cunha, Amelinha Teles, Glaucia Matos Adeniké, Amelinha Teles, Rosely B. Santiago, Flavia Ribeiro, promotoras legais populares (PLP), que há mais de 20 anos promovem curso gratuito para mulheres voltado para ensinar seus direitos - Patricia Stavis/Folhapress

Foi o caso da analista de pesquisa Kelly Guedes, 32, PLP deste ano, que usou sua experiência quando a família descobriu que sua avó era agredida por seu avô. 

Graças ao projeto, ela soube onde buscar auxílio e conseguiu se impor quando foi mal atendida na delegacia e na defensoria pública. “Não queriam nos deixar falar com a advogada. Mas eu estava preparada para dar respostas, usar termos jurídicos. Conseguimos a medida protetiva”, diz. 

Ela também soube orientar a família para compreender a avó, que não tinha revelado o caso por medo de gerar uma briga na família e por sofrer de depressão. 

“A primeira reação é culpar a vítima, perguntar por que ela não contou antes. Esse preparo que eu tive foi importante para mostrar que ela teve os motivos dela para passar por aquilo por tantos anos. Conseguimos conduzir tudo do jeito que minha avó queria”, diz.

Formada em direito, a PLP Kaká Palácio, 38, diz que o projeto vai muito além dos conhecimentos na área jurídica. “A gente aprende a se organizar coletivamente e a conviver com mulheres muito diferentes, que provavelmente nunca se uniriam de outra forma. Isso quebra o estereótipo de que mulher briga, compete.” 

Muitas alunas relatam transformações internas. Mãe de uma jovem de 22 anos, a assistente social Flávia Ribeiro, 42, aprendeu a se livrar da culpa por ter se separado do pai de sua filha. “Eu achava que deveria ter aguentado aquele relacionamento para que ela não sofresse tanto”, conta. 

“Foi um processo de muita descoberta. Compreendi que não sou só mãe, sou gente. Antes, não conseguia me ver como mulher. Hoje não me vejo mais como aquela pessoa que vivia só fazendo tarefas de casa, carregando sacolas de mercado. E isso não me faz menos mãe”, diz.  

Negra, a assistente social Rosely Santiago, 54, diz que costumava relevar os episódios de racismo que sofria. “Por não querer me indispor com a pessoa, eu aceitava. Falava para mim mesma que era besteira, ‘mimimi’. Nesse curso, eu tirei uma venda dos meus olhos”, define, emocionando-se durante a entrevista.

Além de São Paulo, o projeto já foi levado a outras áreas do país: para ribeirinhas do Amazonas, quilombolas do Pará, moradoras do Sertão de Pernambuco e do interior de São Paulo. Há redes de promotoras legais populares em mais de 20 cidades.

“Deu certo porque a gente atrai gente boa. Quem vai é porque quer, não tem aquela coisa de que vai porque tem certificado. E também porque as pessoas que nos ajudam, o que seria o corpo docente, é muito qualificado. Junta tudo isso e dá um caldo maravilhoso”, diz Amelinha.

Para ela, é perceptível a diferença das alunas do início do projeto, que chegavam “tímidas e reprimidas”, para as de agora, “mais informadas e autônomas”. “Somos mais da metade da população e continuamos sendo discriminadas. Não podemos ser consideradas incapazes. Temos muita riqueza, força, temos direito à cidadania plena. O feminismo é necessário por isso.”

 

Esta reportagem faz parte de uma série sobre pessoas e projetos que defendem os direitos humanos pelo mundo, nos 70 anos da promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos (leia o documento na íntegra aqui). 

 

mulher é vítima de estupro a cada 9 minutos no Brasil

60 mil

casos de estupro foram registrados no Brasil em 2017, 8,4% a mais que em 2016

606

casos de agressão sob a lei Maria da Penha são registrados por dia: 1 a cada 2 minutos 

3

mulheres são vítimas de feminicídio a cada dia no Brasil; 66% delas são mortas dentro de casa

38%

dos assassinatos de mulheres no mundo são cometidos pelo parceiro

76,5%

do salário dos homens é o que ganham as mulheres brasileiras, em média, segundo o IBGE

Fontes: 12º Anuário Brasileiro de Segurança Pública (FBSP); Mapa da Violência 2018 Ipea/FBSP; Ministério Público de SP; Organização Mundial da Saúde

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