Descrição de chapéu Venezuela

Venezuelanos disfarçam miséria para celebrar Natal, data preferida do país

Com crise econômica, ausência de parentes e escassez, população improvisa festa e companhia

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Caracas

Sim, Caracas está degradada, há filas para comprar alimentos e indigentes nas ruas, faltam remédios, a inflação explode e a falta de dinheiro vivo é uma realidade que torna o cotidiano um martírio. Também há menos gente nas ruas, reflexo da diáspora que já expulsou mais de 3 milhões de pessoas do país.

Este Natal, porém, não passará batido. Como diz a médica Tatiana Drummond em meio ao atendimento de centenas de crianças desnutridas no Hospital Universitário de Caracas, “o Natal é para os venezuelanos o que o Carnaval é para os brasileiros”. 

“Mesmo quem está nas piores condições encontrará formas de comemorar.”

É por isso que a imagem da cidade nesta época do ano causa estranheza ao visitante. Ao lado de muretas caídas com marcas de bala, motos velhas voando pelo asfalto desgastado, e estabelecimentos comerciais —a atividade comercial caiu mais de 40% nos últimos dois anos—, há enfeites de Natal em todos os lados.

Nos shoppings estão os “luxuosos”, com luzes que ilustram Papai Noel chegando em seu trenó e iluminam vários quarteirões que ficam sem luz durante a noite por causa dos apagões. Mas cada casa, rica ou pobre, também tem algum tipo de enfeite. 

Pode ser uma tradicional árvore adornada com bolas, um Papai Noel de papelão pendurado na porta e, mesmo nos bairros mais castigados pela crise, há os desenhos de crianças e enfeites improvisados.

A celebração não é unânime em tempos de crise humanitária tão grave. “Deveríamos colocar o foco em coisas mais importantes, em atrair a atenção do mundo para a morte das nossas crianças”, diz outro médico, Franco Uchoa, que trabalha numa clínica privada. 

Mas a segurança de uma casa de dança movimentada em Chuao discorda. Ela mostra à reportagem da Folha uma pichação no muro em frente à boate, e segundo está lá há alguns anos, que diz: “Enquanto tem gente morrendo, vocês estão aqui dançando rumba”. 

Usuários e donos do local já apagaram a frase dezenas de vezes, diz, mas ela ressurge. “É desagradável para quem espera a semana inteira para se divertir um pouco e deixar de pensar nessa loucura em que vivemos. Sair do baile e se sentir insultado por estar se dançando um par de horas é uma maldade”, reflete. 

“O venezuelano é caribenho, mesmo na desgraça gostamos de festa”, completa a funcionária, que não quis se identificar.

No caso do Natal, algo parecido ocorre, mas, como diz Afonso Cuerda, 42, “ninguém quer fazer feio, principalmente na frente das crianças”. 

“Eles não precisam saber de tanto horror que está ocorrendo, ainda mais no Natal, que é uma noite mágica. Meus pais me deram isso durante a infância, eu vou fazer o mesmo por meus filhos.” 

Cuerda é corretor de imóveis e conta que seu setor, de aluguel, está parado há meses. Mesmo assim, numa tarde de sábado, ele buscava presentes para os dois filhos, de 6 e 4 anos, numa loja de promoções no município Libertador.

Nem todos, porém, estarão presentes nesta ceia. É difícil encontrar um venezuelano que não tenha um parente próximo ou um amigo que esteja fora do país.

“Por um lado é bom, se não fosse o dinheiro que meu filho mandou não ia ter pernil neste ano”, diz Luis Felipe Lemos, 45, motorista particular. E acrescenta que seu Natal será “cibernético”. “Vamos passar boa parte da noite, minha mulher e eu, conversando com nossos filhos: um está em Miami, outro na Espanha, e o menor está conosco.”

Outro que viverá um Natal de videochamada é Jairo Luna, 62, funcionário da municipalidade de Sucre, na região metropolitana de Caracas. “Minha mulher, meus filhos e meus netos estão na Colômbia. Vou passar a noite conversando com eles pelo computador, tomar rum e dormir.”

Quem pode, vai se juntar aos amigos que estão fora, como a chef Morella Atencio. 

“Vou para a Europa. É claro que estou animada —as férias, as festas, os amigos—, mas me dá muito dó saber que deixo para trás o país como está. Acaba dando uma saudade incrível, mesmo sabendo que as coisas estão tão feias aqui.”

Em geral, entre os que saem (de vez ou momentaneamente), o que mais se ouve é culpa e tristeza em relação a pais e avós, algo que se acentua nas festas de fim de ano.

“Como vou levar minha mãe, que tem Alzheimer, a qualquer lugar? Vai ser desconfortável para ela. Eu vou e ela vai ficar com a cuidadora. Eu me sinto muito mal, mas o que fazer?”, conta a cineasta Fina Torres, cujo resto da família está no México.

Numa loja de árvores de Natal na avenida Rio de Janeiro, em Miranda, a atendente diz que as vendas caem ano a ano. 

“Antes vendíamos árvores naturais, preciosas. Algumas importadas. Então passamos a trabalhar com árvores mais em conta. Menores, ou de plástico. A ideia é que quem venha possa levar ao menos um enfeite. E levam. Natal para venezuelano não dá para deixar de comemorar.”

Ela, que tampouco quis dizer o nome, afirma ficar deprimida quando atende a uma família que não pode comprar nem um enfeite de porta. 

“Não é uma coisa grave quando você compara com os refugiados ou a repressão, essas coisas horríveis pelas quais a Venezuela está passando. Mas ver o olhar triste de um idoso que se dá conta que não vai poder enfeitar sua casa para a visita dos netos, ou de uma criança que fica iludida com um boneco de Papai Noel que o pai explica que não tem dinheiro para comprar, corta o coração.”

A solução ela trouxe de casa. Com a mãe, antes de ir para a loja, prepara doces, que deixa numa bandeja logo na entrada. “Digo para levarem, de graça mesmo, para que pelo menos não saiam com um gosto amargo na boca.”

A ausência de gente nas ruas de Caracas se torna mais marcante nessa época do ano.

Nos Natais anteriores, contam seus habitantes, era impossível transitar perto de centros comerciais diante da massa de gente comprando.

Hoje o trânsito está livre, há muitas motos; lojas expõem cartazes de liquidação, e mais gente olha do que leva. A maior parte dos locais fecha cedo por questão de segurança.

Num canto da praça Bolívar, a reportagem encontrou um menino insistindo em acertar uma melodia em um clarinete. 

“Meus familiares acham que eu não me dou conta de que está tudo ruim, mas eu sei”, diz Jeison Perera, 15, que estuda numa das orquestras do sistema público de educação da Venezuela que resistem à crise.

“É por isso que estou ensaiando, eles não sabem, mas vou tocar dia 24, no jantar. Acho que vou alegrar meus pais e avós. Será meu presente.”

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