Armênia atrai atenção global após revolta política pacífica

País sepultou governo autocrata em poucos meses com protestos e votos

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Paris

Quando começarem os trabalhos da nova legislatura no Parlamento da Armênia, nesta segunda (14), terá sido escrito o capítulo final da chamada Revolução de Veludo, a mobilização popular que, em meados de 2018, pôs fim a uma autocracia longeva sem derramamento de sangue, recorrendo apenas às armas da democracia.

A transição pacífica, que culminou em desempenho avassalador nas eleições de dezembro da coalizão capitaneada pelo líder do movimento, Nikol Pashinian (70% dos votos), levou a revista The Economist a nomear essa ex-república soviética de apenas 3 milhões de habitantes como o país de 2018.

Homem de terno sentado fala em microfone
O premiê da Armênia, Nikol Pashinian, foi eleito após liderar um movimento que, pacificamente, derrubou um regime autocrático que já durava 20 anos - Hayk Baghdasaryan - 10.dez.18/Reuters

Jornalista eleito parlamentar pela primeira vez em 2012, Pashinian se cacifou como uma das principais vozes de contestação à corrupção sistêmica do Estado armênio.

Chegou a ser condenado e preso por supostamente incitar protestos pós-eleição do militar Serzh Sargsyan à Presidência que deixaram dez mortos em 2008, mas foi anistiado três anos depois.

A partir do fim de 2017, ele despontou como arquiteto de marchas barulhentas e de alcance nacional pedindo a renúncia de Sargsyan, presidente desde 2008.

Acuado, o alvo dos protestos ainda teria tempo para manobrar, passando o cetro a um poste (Armen Sarkissian) antes de se aboletar, em abril de 2018, no posto de premiê —cujos poderes ele tratara de aumentar.

Foi a gota d’água: a grita generalizada se encorpou, e Sargsyan, desgastado por ondas de contestação popular que ao menos desde 2011 investiam contra sua gestão (questionando privatizações, aumento de tarifas e reforma da Previdência, entre outras medidas), capitulou.

Pashinian seria eleito chefe de governo duas semanas depois, em 8 de maio, mas se veria obrigado a compor com um Parlamento que lhe era hostil —o partido do ex-presidente detinha a maioria dos assentos. Por isso, renunciou em outubro para forçar a convocação de eleições. O resultado foi o “tsunami” descrito no começo deste texto.

O ex-editor de jornal é comparado por simpatizantes a Gandhi e Mandela pela aversão à violência. Seus críticos torcem o nariz para a retórica por vezes teatral e para os deslizes populistas, como o figurino com que ele costumava aparecer em manifestações —camiseta camuflada.

Homem com bandeira em meio a multidão
Manifestantes protestam em Ierevan, capital da Armênia, contra o governo autocrático do então premiê Serzh Sargsyan - Gleb Garanich - 2.mai.18/Reuters

Caberá a Pashinian dinamizar a economia armênia, dar novo impulso ao pacto social e restabelecer a confiança geral nas instituições. A economia do país, ancorada em agricultura, mineração e em uma ascendente indústria de tecnologia, deve crescer entre 4% e 5% neste e nos dois próximos anos. O desemprego, porém, está em 19%, e cerca de 30% da população vive abaixo da linha de pobreza.

Para fazer frente a isso, Pashinian terá de trocar palavras de ordem de apelo ecumênico por um programa de governo com metas, fadado a acolhida não consensual.

“As pessoas entendem que há um novo comando e que é preciso ter paciência, porque não se pode mudar as coisas da noite para o dia”, afirma Salpi Ghazarian, diretora do Instituto de Estudos Armênios da Universidade do Sul da Califórnia. “Mas Pashinian e seu partido deverão ser hábeis no uso dessa boa vontade. Sozinha, a confiança do eleitor não altera a realidade política e econômica.”

“Surgirão dissensões dentro da aliança governista, e a reação de Pashinian e de seu grupo a isso será determinante”, avalia Ghazarian.

A abertura ao contraditório se insere no processo de amadurecimento de uma cena política em que autocratas se sucederam no comando por 20 anos —a república só existe na configuração atual desde a queda da União Soviética, em 1991.

“Há agora um líder com legitimidade popular, mas estamos em um sistema parlamentarista sem partidos fortes, sem ideologias e programas bem delineados”, observa Alexander Iskandarian, analista que dirige o Instituto Cáucaso, na capital, Ierevan.

Segundo ele, a prioridade do novo governo deve ser atrair investimento. “Não temos petróleo, gás nem recursos naturais. Tampouco acesso ao mar. É preciso trabalhar a imagem do país, criar um ambiente mais propício à entrada de capital.”

Para Salpi Ghazarian, além de investimento externo, urge recuperar o sistema educacional. Já falta mão de obra qualificada na indústria de tecnologia. A agricultura, ponta de lança da economia, carece de inovação. O setor de turismo pede formação profissional e infraestrutura.

Na opinião da professora, a diáspora armênia tem um papel a desempenhar nesse momento de abertura do país.

As redes de contatos construídas em latitudes tão distintas quanto Alemanha, EUA, Tailândia e Brasil (onde a comunidade conta mais de 100 mil pessoas), somadas ao know-how adquirido em setores como os de agricultura, joalheria, bancos e tecnologia, serão valiosas.

No front externo, Pashinian tem dois abacaxis a descascar. A relação com a quase vizinha Rússia, de quem a Armênia depende fortemente em termos de energia e comércio, constitui um deles.

Moscou possui duas bases militares na ex-república soviética, que é signatária de acordos comerciais e de segurança urdidos pelo país de Vladimir Putin.

“Não há escolha, esse laço não é negociável. O que não significa que não possam existir relações com outros países e blocos, como os EUA, a União Europeia ou a América do Sul”, afirma Ghazarian. “A

Armênia é tão pequena como ator geopolítico ou parceiro comercial que tem margem de manobra para arranjos específicos dependendo de suas necessidades.”

Outra pauta espinhosa é o conflito de três décadas na região de Naghorno Karabakh, situada no vizinho Azerbaijão, mas habitada por uma maioria armênia.

A província declarou independência em 1991, detonando um conflito que matou mais de 30 mil pessoas e só foi apaziguado três anos depois, coma assinatura de um cessar-fogo. A tensão, entretanto, persiste.

“Talvez Pashinian, aproveitando seu capital político, consiga construir um consenso em torno da ideia de uma solução negociada”, arrisca Ghazarian. “Mas isso pode soar inocente diante do discurso recorrente do presidente do Azerbaijão [Ilham Aliyev] de que é preciso varrer armênios do mapa.”

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