Cartunista desenha assassinados por repressão na Nicarágua

Com ilustrações, nicaraguense conta histórias de mortos pela ditadura no país desde abril

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São Paulo

No desenho, Daryeli, 2 anos e meio, e Matías, 5 meses, aparecem sobre uma nuvem, sorrindo. Ambos têm asas, e ela segura uma bandeira da Nicarágua. O triste destino das duas crianças está escrito a tinta no papel: morreram carbonizadas em junho de 2018, quando sua casa foi incendiada por paramilitares após a família se recusar a deixar que usassem o telhado do imóvel para disparar contra manifestantes.

A ilustração faz parte de uma série que homenageia outras 33 vítimas da forte repressão do ditador Daniel Ortega contra a população que pede sua saída desde abril. 

É um tributo do cartunista nicaraguense Pedro X. Molina, 42, a eles e a suas famílias. 

Entre os perfilados está a brasileira Raynéia Lima, que estudava medicina em Manágua e foi morta com tiros de grosso calibre. No desenho, ela usa jaleco e estetoscópio.

 

​Molina, que publica charges há 20 anos nos principais jornais de seu país e em meios estrangeiros como o The Washington Post, não revela onde mora atualmente, pois é constantemente ameaçado. "Recebo desde as ofensas mais sujas até ameaças explícitas de prisão e morte", conta. 

Ele teve a ideia da série de desenhos durante o Inktober, projeto mundial que encoraja artistas a postar um desenho por dia nas redes sociais durante o mês de outubro. 

"Este ano, não tinha ânimo para participar com nada muito lúdico. Aí tive a ideia de desenhar, a cada dia, uma das vítimas de repressão", disse à Folha. "Achei que seria uma forma de mostrar o que estão fazendo na Nicarágua. Não é um conflito civil, é um massacre de um Estado armado contro o povo desarmado."

Segundo a CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos), foram ao menos 325 mortos desde abril no país, entre eles 24 menores de idade, além de mais de 2.000 feridos, 300 presos e dezenas de milhares que se exilaram em outros países. 
 

Molina começou a série com uma lista de nomes para representar, mas acabou recebendo pedidos de conterrâneos para que desenhasse seus familiares assassinados. 

"Eles me alimentaram. Foi uma conexão muito bonita e muito forte. Houve pessoas exiladas no México que colocaram o desenho nos altares na festa dos mortos", diz. 

As ilustrações saíram também no El Confidencial, jornal no qual Molina publica aos domingos. Desde que o edifício da publicação foi ocupado pela polícia, em meados de dezembro, o trabalho ficou mais desafiador, relata. 

"A redação está funcionando quase clandestinamente. Estão fazendo o possível, usando estúdios de outros veículos, trabalhando à distância. Muitos jornalistas tiveram que sair do país, e os que ficaram são constantemente ameaçados. Está muito complicado fazer jornalismo independente na Nicarágua", afirma.

No fim de dezembro, o canal 100% Notícias foi fechado e seu diretor foi preso, assim como outros jornalistas. O diário mais antigo do país, La Prensa, está com a edição impressa ameaçada pelo bloqueio do governo ao papel. Também com problemas de matéria-prima, o El Nuevo Diario deixou de circular na versão impressa aos fins de semana.


Além de fazer uma crônica do que acontece no país, Molina espera, com seu trabalho, "acompanhar o povo em sua dor e frustração". "Costuma-se pensar que a caricatura é só para fazer rir. O que descobri nesses meses é que é uma forma de me conectar com a dor das pessoas, viver essa empatia em relação às vítimas, processar a dor e o luto." 

Mesmo com as ameaças, ele não pensa em parar. "Não há outra coisa que eu possa fazer. É quem eu sou, meu trabalho, o que sinto como cidadão."

Ele tenta também publicar charges sobre a situação da Nicarágua na imprensa internacional, mas não tem sido fácil. "É um país pequeno, não tem petróleo, é um zero à esquerda para a maioria. Gostaria que o mundo se importasse mais, porque não é uma situação isolada, a caravana de imigrantes que foi para os EUA está cheia de nicaraguenses."
 

Molina pensou em fazer uma exposição com a série das vítimas, mas não encontrou um espaço disposto a recebê-la na Nicarágua. "O medo é generalizado", diz. "Mas o que eu mais quero é um dia reunir as famílias e presenteá-las com os originais, como uma homenagem a seus entes queridos assassinados."

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