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Governo Bolsonaro

Discurso de chanceler mostra que falatório não está restrito aos artigos

Falas de Ernesto Araújo causaram estranhamento entre diplomatas estrangeiros

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Ernesto Araújo, ministro das Relações Exteriores, durante coletiva no Itamaraty - Ricardo Moraes/Reuters
Brasília

No núcleo duro do bolsonarismo, a diplomacia é vista como uma espécie de laboratório em que é possível brincar com os arcanos da mitologia dos novos donos do poder enquanto Paulo Guedes e companhia tratam de assuntos mais urgentes.

O clã Bolsonaro trabalha com uma construção de discurso eficaz: o Brasil da política Sul-Sul da era petista levou a alinhamentos antiamericanos danosos ao país e o colocou à mercê do chamado globalismo.

A fala inicial do novo chanceler, Ernesto Araújo, mostra que o chefe da diplomacia foi mesmo escolhido a dedo —no caso, o do escritor conservador Olavo de Carvalho, ideólogo adotado pelas franjas mais ruidosas dessa nova direita.

As inúmeras citações de seu discurso causaram estranhamento entre diplomatas estrangeiros em Brasília. Um deles questionou, por meio de mensagem de WhatsApp, a Ave Maria em tupi do texto com um sonoro “WTF?” (sigla inglesa em baixo calão para “o que é isso?” ou “como assim?”).

De fato, é inusual para o chefe da diplomacia desfiar tal rosário logo em sua estreia pública. Um colega mais sênior de Itamaraty afirmou ter ficado chocado com o falatório, porque achava que ele era restrito aos parcos artigos que o agora ministro havia assinado.

Mas o que é o globalismo a que Araújo se refere? Grosso modo, é uma espécie de conluio entre forças supranacionais visando a destruição da civilização ocidental e seus valores, substituindo-os por algum tipo de governo mundial socialista.

Por trás dela, gente como o megainvestidor George Soros, o Partido Democrata dos Estados Unidos, o PT e outros partidos integrantes do Foro de São Paulo.

O combate a tudo isso se daria ideologicamente, com o alinhamento automático propugnado por Bolsonaro com o chamado campo americano —enquanto os Estados Unidos estiverem sendo liderados pelo republicano Donald Trump.

Os problemas já se avolumam. A área ligada ao agronegócio do novo governo tem horror à aproximação com Israel, pois a prometida mudança da embaixada do Brasil para Jerusalém pode gerar prejuízo aos exportadores de aves e bovinos —que têm forte penetração nos mercados muçulmanos, que consideram ao menos metade da cidade sagrada como capital da Palestina ainda embrionária.

Já os acenos ao trumpismo, ainda que espelhem ideologicamente o que Bolsonaro, Araújo e Carvalho dizem acreditar, traz um problema adicional quando o assunto é China.

O Brasil vai se posicionar contra Pequim, seu maior parceiro comercial, se o caldo engrossar na guerra tarifária entre a potência oriental e Washington? As contas foram feitas?

Isso tudo reforça a base do bolsonarismo e dá um senso de cumprimento de promessas inaudito entre nossos políticos. Mas os limites da realidade tenderão a criar constrangimentos maiores do que discursos tão herméticos quanto caudalosos.

Não há dúvidas que a diplomacia Sul-Sul era enviesada à esquerda. O antiamericanismo pueril era muitas vezes inconsequente, a abertura de postos em países sem peso político em troca de votos que nunca vieram para os cargos almejados em organismos internacionais se mostrou falha, os prejuízos e a corrupção em negócios com ditaduras amigas do PT, alvo de investigação.

A correção disso já começou no governo Michel Temer (MDB). A questão que causa desconforto a quadros mais moderados do Itamaraty, igualmente cansados da ideologização dos anos Lula à frente do órgão (a gestão Dilma Rousseff é um hiato em suspensão no vácuo), é a mera troca de sinais do mesmo desvio.

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