Fórum Econômico Mundial é assombrado por crises domésticas, rixa comercial e Venezuela

Com avanço dos nacionalismos, Davos tenta reinventar multilateralismo

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A chanceler alemã Angela Merkel conversa com o primeiro-ministro italiano Giuseppe Conte em Davos  - Arnd Wiegmann - 23.jan.2019/Reuters
Davos

Donald Trump não foi, Emmanuel Macron também não e Theresa May tampouco. Ímãs de audiência em 2018, três dos principais líderes mundiais desta vez ficaram resolvendo crises domésticas (respectivamente, a paralisia do governo americano, a sucessão dos processos dos chamados “coletes amarelos” e a falta de um acordo sobre o brexit).

O mesmo ocorreu com o argentino Maurício Macri, cortejado no ano passado.

As defecções provocaram um déficit de carisma na reunião do Fórum Econômico Mundial deste ano em Davos, tradicional ponto de encontro entre quem decide os rumos da política, da economia, do ativismo e da academia no planeta.

E também resumiram o momento: enredados em seus próprios problemas, muitos países têm deixado o multilateralismo e a busca por soluções coordenadas em segundo plano –ou até fugido delas. 

O dilema não foi ignorado pelo Fórum, que organizou a reunião deste ano em cima do tema “remodelando a arquitetura global” e ensaiou um mea-culpa. Boa parte dos painéis foi voltada a lidar não só com problemas mais urgentes em finanças, ambiente e sociedade, mas também para debater o que, no atual sistema multilateral, precisa ser reformado –e como fazê-lo. 

“Se continuarmos a dizer ‘multilateralismo é necessário, imbecil’, vamos perder a batalha”, disse o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, para quem é necessária uma articulação mais ampla do que a oferecida por organismos como FMI (Fundo Monetário Internacional) e OMC (Organização Mundial de Comércio).

“Há um reconhecimento crescente do quão desconectadas as elites estão de suas sociedades, e não só no Ocidente. Existe uma percepção de que temos muito acesso a dados e tecnologia, mas de que isso não está apontando caminhos” afirmou a diretora da Escola de Governo Blavatnik da Universidade de Oxford, Ngaire Woods, em um painel que questionava se o Ocidente estava paralisado.

A sensação dominante é a de que há algo errado nas bases do sistema multilateral para que tantos no mundo tenham optado pela via nacionalista, seja no brexit ou na eleição de Trump, de Jair Bolsonaro e de outros líderes que acenaram a esse sentimento à esquerda ou à direita.

Ainda assim, como resumiu no painel de encerramento do Fórum a diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional, Christine Lagarde, não há saída para problemas atuais que não envolva a cooperação. “Cooperação público-privada. Cooperação entre empresas, sindicatos, academia”, exemplificou. Cooperação em todas as áreas. O ministro da Justiça brasileiro, Sergio Moro, bateu na mesma tecla ao falar em painéis sobre combate à corrupção e ao crime organizado. 

O próprio Bolsonaro, que se elegeu com um discurso nacionalista, abriu seu curto pronunciamento na plenária na terça (22) reconhecendo que “um [país] precisa do outro”.

Na visão de Kishore Mahbubani, professor de prática política na Universidade Nacional de Singapura, “as elites erraram ao só prestar atenção ao princípio da liberdade e não pensar em igualdade”. “Para uma sociedade funcionar, precisa-se da mão invisível do livre mercado e da mão visível da boa governança política.”

 

As variáveis não resolvidas, porém, lançaram sombra nessa busca por soluções.

Com uma Europa sem certeza de como fica após o brexit, em vigor já no fim de março próximo, EUA e China envolvidos em uma batalha comercial que até agora a Organização Mundial do Comércio não foi capaz de arrefecer, e a América Latina assistindo ao colapso venezuelano afetar toda a região, os esforços para reestruturar o sistema multilateral se diluem.

Alguns nortes, porém, foram estabelecidos pelo Fórum: 1) é preciso haver maior diversidade e redução da desigualdade, já que o sistema em vigor excluiu muitos e não respondeu às necessidades de uma grande massa, que agora se volta ao nacionalismo; 2) as entidades multilaterais precisam se comunicar melhor com a sociedade, pois a mensagem não está sendo nem bem passada nem bem compreendida; 3) é preciso haver regulações conjuntas das finanças globais e melhor comunicação sobre fragilidades, já que a cada crise a contaminação tem sido rápida e a recuperação, lenta. 

“Os políticos perderam muita credibilidade aos olhos da população no mundo, e também o sistema bancário. A confiança das pessoas em um sistema econômico-financeiro estável foi abalada. E há menos margem de manobra para as próximas crises”, disse a chanceler alemã, Angela Merkel, em um discurso no qual defendeu que todos cedam um pouco em nome de soluções conjuntas.

Para Woods, “muitos líderes estão percebendo a necessidade de agir rápido, porque o modelo atual não funciona”. “Não se trata de salvar a globalização, mas de redefinir o capitalismo, a fim de que a maioria das pessoas esteja preparada para jogar nesse sistema, e não pronta a destruí-lo”, disse ela.

Segundo Guterres, é preciso perceber que a globalização não entregou o que se esperava dela, não resolveu todos os problemas. “Muita gente ficou pra trás. Não só por causa dela, mas pelo desenvolvimento tecnológico também [...] O receio das pessoas em relação a seus empregos, a seu futuro, está muito mais ligado à evolução tecnológica do que à globalização.”

Na visão do secretário-geral da ONU, há muitos que acham que “políticos só pensam em eleições, e não nos problemas deles”. “É fácil dizer que a mudança climática cria oportunidades... Temos que tratar de soluções para educação.”

Em Davos, o debate também foi prejudicado pelo esvaziamento do Fórum depois que o americano Trump retirou toda a sua delegação por causa da paralisação do governo federal em seu país. 

Na terça-feira (22), dia em que Jair Bolsonaro discursou, muita gente ainda não tinha chegado (Merkel, o japonês Shinzo Abe, o italiano Giuseppe Conte e o espanhol Pedro Sánchez discursaram todos na quarta). 

No meio da tarde da quinta-feira (24), os corredores do Centro de Congresso de Davos, que sedia o Fórum, já começavam a esvaziar. Na sexta, poucos dos cerca de 3.000 participantes estavam ainda em Davos.

A falta de solução para o impasse comercial entre China e EUA também manchou os prognósticos para investimentos. E o estouro da crise na Venezuela, agora com dois governos simultâneos, levou a atenção dos governantes latinos (Bolsonaro, o colombiano Iván Duque, o equatoriano Lenín Moreno, o paraguaio Mario Abdo e o costarriquenho Carlos Alvarado) para o país.

Painéis do evento têm maior diversidade

Neste ano, a meta do Fórum era ter mulheres em todos os painéis –na mesa final, Christine Lagarde debateu com a CEO do Banco Mundial, Kristalina Georgieva, a professora Mariana Mazzucato, um homem negro (Lesetja Kganyago, presidente do BC da África do Sul) e um asiático (Haruhiko Kuroda, presidente do BC do Japão).

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