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Tom Long

Herança liberal pode ajudar América Latina a lidar com Maduro e Bolsonaro

Região vive crescimento do iliberalismo, mas tem ferramentas para lutar contra ele

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Tom Long

A Venezuela hoje se vê posição em central na contínua tensão entre as forças liberais e iliberais na América Latina, processo que tem origem local, mas que está sujeito a poderosas influências internacionais.

De um lado, os Estados Unidos e diversos governos latino-americanos reconheceram Juan Guaidó, o presidente da Assembleia Nacional, como novo líder legítimo da Venezuela. Do outro, Nicolás Maduro se aferra ao poder com apoio da Rússia e de Cuba.

O iliberalismo na Venezuela abriu caminho para um desastre humanitário sem precedentes no país, que estimula a contestação à legitimidade de Maduro. A despeito do apoio crescente a Guaidó, a maioria dos vizinhos latino-americanos tolerou silenciosamente a erosão da democracia e do mercado na Venezuela.

Depois da Guerra Fria, a América Latina adotou os princípios da ordem liberal internacional em grau talvez maior que o de qualquer outra região do mundo. Mas o iliberalismo ascendente agora abarca todo o espectro político e, em alguns casos, conquistou apoio nas urnas.

Em 1º de janeiro, o populista Jair Bolsonaro se tornou presidente do Brasil, a despeito de —ou talvez por causa de— sua falta de preocupação com os direitos humanos e o Estado de Direito. O presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, está usando "consultas populares" questionáveis para justificar decisões que ignoram oposição significativa. Em Honduras, um presidente de inclinações direitistas ampliou seus poderes e tolerou violências contra movimentos sociais. Na Nicarágua, um ex-líder guerrilheiro esquerdista se tornou autoritário e está reprimindo protestos pacíficos.

A América Latina deveria ter deixado tudo isso para trás. Mas os padrões lá refletem desafios internacionais mais amplos à ordem liberal internacional, exemplificados pela eleição do presidente Donald Trump e pela decisão do Reino Unido de deixar a União Europeia.

A ordem liberal também parece estar ameaçada de fora, pelos ataques da Rússia de Vladimir Putin à democracia —e, na quinta-feira (24), pelo apoio explícito da Rússia a Maduro. A China, que é um dos grandes credores da Venezuela, representa um desafio mais sutil, e talvez maior, às normas internacionais vigentes.

As discussões sobre essa crise de confiança nos princípios liberais internacionais em geral desconsideram a América Latina. Surgiram comparações entre Trump e Bolsonaro, mas o recuo da democracia na América Latina de forma alguma se limita ao avanço da direita populista, e tem muito pouco a ver com a ascensão de Trump.

Como a história da Venezuela mesma mostra, a América Latina experimentou períodos de iliberalismo e movimentos apaixonados em defesa da democracia e dos direitos humanos, ao longo das décadas. Eles devem ser compreendidos no contexto da relação volúvel entre a América Latina e a ordem liberal internacional.

Praticamente desde a independência, no século 19, os Estados latino-americanos se viram incluídos apenas parcialmente nas regras que regiam a ordem liberal internacional. 

Isso aconteceu por diversas razões. Primeiro, as regras internacionais da ordem liberal foram aplicadas apenas de modo esporádico ao continente porque as grandes potências, entre as quais os Estados Unidos, não as seguiam a fim de proteger seus interesses na região.

Segundo, as tentativas da elite latino-americana para serem incluídas no desenvolvimento da lei e da diplomacia internacional eram frequentemente rejeitadas. Terceiro, as tentativas dos Estados da América Latina para reforçar seu engajamento com as instituições internacionais e os mercados mundiais em muitos casos tinham por único objetivo garantir o poder de elites que praticam o iliberalismo e o compadrio político em seus países.

Isso é algo que os Estados poderosos na ordem liberal internacional ignoraram alegremente, se concentrando mais em suas prioridades políticas do que em garantir que os princípios e práticas liberais estivessem sendo respeitados dentro da América Latina.

Isso foi exemplificado recentemente por Bolsonaro, que em casa praticamente se vangloria de seu iliberalismo mas no exterior corteja os mercados e os negócios mundiais. À esquerda, a generosidade dos líderes da Venezuela abrandou a resposta regional ao declínio da democracia no país —até que o dinheiro acabou e a crise começou a atravessar as fronteiras.

As experiências da América Latina expõem o fato de que a vida à margem da ordem liberal internacional significa que os ganhos da liberalização são compartilhados de modo estreito, nacionalmente, e que o comprometimento com a democracia e os direitos humanos é muitas vezes quase invisível.

Esses problemas ajudaram na ascensão do presidente venezuelano Hugo Chávez, duas décadas atrás, e colocaram o Estado no caminho para a crise atual. E o fato é que dinâmicas semelhantes têm posição central nos problemas atuais da ordem liberal internacional.

Os defensores desses princípios liberais na América Latina, e aqueles que interagem com a região no exterior, deveriam combinar as ricas tradições liberais da região e a cooperação entre os países a fim de dar forma a regras e práticas internacionais. Essa tradição foi refletida de modo precário por uma nova onda de organizações regionais criadas na década de 2000, que essencialmente serviram para proteger e legitimar aqueles que já estavam no poder, entre os quais Maduro.

Os líderes da região fariam melhor se retomassem os ideais de defesa coletiva da democracia, com foco na prevenção. Eles têm raízes na Doutrina Tobar, de 1907, e na Doutrina Larreta, de 1945, que encorajavam o engajamento multilateral com os assuntos internos de Estados que violassem os direitos humanos ou cujos governos tivessem chegado ao poder por meios inconstitucionais.

Essas propostas enfatizavam a pressão dos parceiros regionais sobre governos e respostas colaborativas a práticas não democráticas ou violações de direitos humanos. Elas devem ser aplicadas cedo e de modo consistente, para prevenir a próxima crise de iliberalismo, não importa que venha da direita ou da esquerda.

Respostas baseadas nesses ideais da diplomacia latino-americana poderiam ajudar a reanimar os compromissos liberais da região e a superar alguns dos desafios mais amplos que a ordem liberal internacional enfrenta.

Especificamente, as tradições liberais do continente e a história de cooperação entre seus Estados sugerem pressão diplomática preventiva e direta, e alijamento —em lugar da tolerância e cortesia que caracterizam a resposta ao declínio democrático da Venezuela. O espaço concedido pela região permitiu que Maduro consolidasse seu poder, o que reduz dramaticamente as perspectivas de soluções pacíficas.

A pressão regional coletiva sobre atividades iliberais pode ser mais efetiva do que recorrer a ações punitivas depois que o desastre surge, como é o caso agora com os milhões de venezuelanos que estão sofrendo.

Para retomar sua vitalidade, o projeto da ordem liberal internacional, na América Latina e em outros lugares, precisa garantir que os ganhos econômicos, sociais e políticos da ordem internacional sejam distribuídos a todos, e de maneira coerente. Os latino-americanos não precisam buscar soluções no exterior para essa crise da ordem internacional; basta que recuem à herança liberal da região.

Tom Long é professor na Universidade de Warwick (Reino Unido) e no Centro de Investigación y Docencia Económicas (México), além de ser autor do livro “Latin America Confronts the United States: Asymmetry and Influence”; tradução de Paulo Migliacci  

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