Professora sueca contrata mercenários para salvar doutorando do Estado Islâmico

Aluno temia por sua família no Iraque e foi resgatado em operação cinematográfica

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Charlotta Turner, professora da Universidade de Lund (Suécia), e Firas Jumaah, doutorando resgatado de área ocupada pelo Estado Islâmico - Universidade de Lund
São Paulo

Como lidar quando um dos alunos de doutorado que você orienta manda uma mensagem para avisar que infelizmente não poderá entregar sua tese?

Charlotta Turner, professora de química na sueca Universidade Lund, não quis nem saber: Firas Mohsin Jumaah ia, sim, concluir seus estudos, nem que para isso ela precisasse contratar mercenários para livrar seu orientando das garras do Estado Islâmico.

Assim foi.

Firas é yazidi, uma minoria religiosa perseguida em seu país natal, o Iraque. E para lá foi dias antes de escrever à orientadora, preocupado com a segurança da esposa e seus dois filhos pequenos. Eles haviam viajado para o casamento de um parente, e Firas ficou na Suécia —tinha trabalho acadêmico para entregar.

Correu atrás da família e, uma vez no Iraque, escreveu a Charlotta: se ele não voltasse em uma semana, que ela encarecidamente o excluísse do programa de doutorado.

Nem pensar, ela decidiu. “Na Suécia, temos uma regra, que inclusive é uma lei, que diz que você tem o direito de defender sua tese de doutorado enquanto viver, por sua vida inteira”, a acadêmica disse à Folha.

“A pesquisa tem sua integridade própria. Achei inaceitável cumprir o que Firas sugeriu, chutá-lo do doutorado só por ele estar preso na guerra do Iraque. Nenhum conflito político-religioso deve impedir a ciência de avançar, atrapalhar meus alunos de doutorado a obter seu diploma. Isso é importante para mim.”

A trama de dar inveja a roteiristas hollywoodianos aconteceu em 2014 e veio a público agora, após uma amiga jornalista de Charlotta fazer um documentário sobre o caso.

Nada veio à tona antes pois, segundo Charlotta, Firas e família estavam traumatizados e ainda temiam por suas vidas.

Charlotta Turner, professora da Universidade de Lund (Suécia), e Firas Jumaah doutorando resgatado no Iraque - Reprodução/Twitter

Assim que recebeu a mensagem de texto do doutorando, o primeiro passo da professora foi ligar e entender que história é essa de não voltar para a universidade. Firas, nervoso, chorava. Ela entendeu que era um caso de vida ou morte.

A família dele desembarcou no Iraque dias antes da facção terrorista se autodeclarar um califado, o Estado Islâmico (que até 2017, ano do seu declínio, controlou extensões de território no país e na Síria). 

Os terroristas atacaram uma cidade vizinha à que a esposa de Firas estava com os filhos do casal. Mataram milhares de yazadis e escravizaram outros tantos no que ficou conhecido como Massacre de Sinjar. 

“Minha esposa estava em pânico total. Todos estavam chocados com o Estado Islâmico”, ele relatou à LUM, a revista da universidade. “Que tipo de vida eu teria se algo acontecesse com eles lá?”

Foi até eles e não conseguiu mais voltar. A certa altura, o Estado Islâmico chegou a dominar uma área a 20 quilômetros da casa onde a família estava. Chegaram a cogitar se esconder nas montanhas.

Charlotta ouviu aquele conto de terror e acionou o chefe de segurança da Lund, que a ajudou a achar uma companhia que topasse a operação de resgate. Dias depois, Faris e a família foram encontrados por seis mercenários armados, divididos em dois jipes do modelo Land Cruiser.

Com coletes a prova de balas, eles foram retirados de uma cidade no norte iraquiano, passando por vários postos de controle até um aeroporto. “Nunca me senti tão privilegiado, VIP”, disse Firas.

Sua professora pagou cerca de 60 mil coroas suecas (R$ 25 mil) para a equipe de segurança que o socorreu, dinheiro depois debitado do salário dele. Na Suécia, doutorandos são remunerados com até 30 mil coroas suecas por mês.

Charlotta conta que orienta estudantes de todo o mundo, incluindo Brasil, China e Paquistão, e nos grupos de pesquisa sob sua tutela também são tópicos de debate igualdade, psicologia de grupo, liderança e ética da ciência.

Na ciência, diz, “somos todos iguais, não importa de onde viemos ou no que acreditamos quando você pesquisa química analítica, como no meu grupo. Desde que você tenha uma paixão pelo ofício, curiosidade e a disposição para trabalhar duro e com ética”.

Com Firas ela ainda assinaria muitos artigos acadêmicos, o mais recente de 2018, sobre “quantificação multicomponente contínua durante extração com fluído supercrítico aplicada a microalgas”.

“Fiquei chateada com a situação de Firas porque ele era o meu estudante, e era minha responsabilidade que ele terminasse a tese”, diz Charlotta.

“Não tinha ideia que um professor poderia fazer algo por nós”, Firas disse à revista LUM. Charlotta estava de férias quando organizou tudo.

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