Descrição de chapéu The New York Times

Revelação de espiões da KGB deixa Letônia em crise moral

Agência surpreende e expõe lista de colaboradores soviéticos em documentos

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Andrew Higgins
Kukas (Letônia) | The New York Times

Na época soviética, Yuris Taskovs informou à KGB que um vizinho assistia pornografia alemã e denunciou centenas de ativistas anti-Moscou na Letônia. Por isso, ele e outros como ele sabiam que se os arquivos da polícia secreta fossem divulgados suas atividades seriam reveladas. A divulgação aconteceu no mês passado.

Não que Taskovs em particular esteja preocupado. “Durante 12 anos trabalhei para eles com grande entusiasmo”, disse o letão de 63 anos sobre sua época como informante da KGB antes do colapso da União Soviética, em 1991.

Para muitos outros, porém, a aparição de seus nomes, codinomes e datas de recrutamento nos documentos da KGB recém-divulgados foi uma surpresa traumática.

homem em meio a estantes de arquivo
Arquivo da antiga KGB em Riga, Letônia - Akos Stiller/The New York Times

“Estou chocado. Eu não tinha ideia”, disse Rolands Tjarve, ex-diretor da emissora nacional após a independência e hoje professor na Universidade da Letônia. Insistindo que nunca serviu como informante —ou o que a KGB chama de “agente” nos arquivos—, ele disse que irá à Justiça para limpar seu nome.

Um dos três países bálticos que renasceram como Estados independentes em 1991, a Letônia discute há quase três décadas o que fazer com as “sacolas” da Cheka —malotes cheios de arquivos secretos deixados pela KGB, a agência secreta soviética originalmente chamada de Cheka.

Outros antigos territórios soviéticos, como a Lituânia, a Estônia e a Geórgia, encontraram alguns arquivos da KGB depois que se dissociaram de Moscou. A Alemanha rapidamente abriu os arquivos deixados pela polícia secreta Stasi, da Alemanha Oriental, depois da reunificação em 1990.

Mas só a Letônia ficou com um índice sistemático que lista nomes reais e codinomes de mais de 4.000 supostos agentes, juntamente com um arquivo digital de atividades da KGB conhecidas como Delta.

Por isso, em vez de esclarecer, uma votação do Parlamento letão para que o conteúdo das sacolas seja publicado na internet confrontou o pequeno país báltico com uma questão perturbadora. 

Ele está lentamente aceitando o fato de que sua população não foi apenas vítima da opressão soviética, mas também colaborou ativamente? Ou foi vítima de uma trama da KGB para semear dissensão após a independência com registros fabricados de traição?

A última hipótese é amplamente aprovada pelos que foram denunciados como agentes, mas insistem que nunca trabalharam para a KGB. 

Em vez disso, segundo dizem, foram enquadrados por oficiais da polícia soviética que aumentou sua lista de informantes para impressionar superiores ou plantar uma bomba-relógio de longa duração para o futuro da Letônia. 

“É impossível a KGB ter deixado para trás a lista de agentes no que considerava território inimigo”, disse Tjarve. 

Os arquivos, segundo ele, devem ter sido produzidos e deliberadamente deixados como “presente especial” à Letônia (hoje, membro da Otan, a aliança militar ocidental que surgiu como contrapeso à União Soviética), como parte de uma “operação de desinformação”.

Os letões “nas sacolas”, termo usado para as pessoas que aparecem nos arquivos, incluem um ex-primeiro-ministro, o presidente da Suprema Corte, um antigo ministro das Relações Exteriores, líderes das Igrejas Católica e Ortodoxa, reitores de universidade, cineastas e astros de televisão. 

Alguns nomes vazaram anos atrás ou apareceram no documentário “Lustrum”. Mas a publicação da lista completa ainda causou comoção.

Mara Sprudja, diretora do arquivo nacional, que começou a publicar os arquivos na internet em dezembro e lançará mais um lote em maio, disse que ficou especialmente chocada ao ver o nome de Andres Slapins, cinegrafista letão morto a tiros por tropas soviéticas que atacaram ativistas pró-independência. 

“Ele foi um herói. Como poderia ser um agente da KGB? Não faz sentido”, afirmou.

Divulgar os nomes de pessoas que enfrentaram escolhas difíceis “em um tempo e lugar diferentes”, segundo ela, “apenas criou mais confusão”, e não esclarecimento libertador. Não está claro, acrescentou Sprudja, o que os supostos agentes fizeram para a KGB, e “ninguém realmente sabe hoje o que eles mesmos teriam feito nessa situação”. 

Tão estranho quanto os nomes que aparecem são os dos que não constam da lista, como Janis Rokpelnis, conhecido poeta letão que confessou trabalhar para a KGB. 

Indulis Zalite, ex-diretor do centro de documentação e hoje seu consultor, é uma das poucas pessoas que há muito sabe dos nomes “nas sacolas”. Ele disse duvidar que os arquivos tenham sido deixados como um ato de sabotagem.

“Tudo era um caos em 1991”, explicou. “Eles não poderiam organizar uma trama profunda. Estavam desorganizados.”

Dentre as poucas pessoas dispostas a divulgar o que fizeram e o motivo estão o poeta Rokpelnis, cujo nome misteriosamente não apareceu “nas sacolas”, e Taskovs, o ex-informante de 63 anos identificado nos arquivos como Agente 18471, codinome “Âmbar”.

Taskovs, recrutado em 1979, tornou-se um cristão dedicado em 2001 depois de uma doença e desde então tentou atenuar sua antiga colaboração. 

Em uma entrevista na semana passada, ele narrou que foi vítima de bullying na escola e viu seu pai ser humilhado por policiais soviéticos. Ao se oferecer para trabalhar para a KGB, disse, “eu tinha um poder secreto e proteção”.

Taskovs disse que agora encontrou segurança na fé cristã, por isso pode enfrentar sua antiga colaboração com um sistema que ele descreveu como “totalmente errado”. 

Mas, disse, “é totalmente idiota atirar todos esses nomes na sarjeta” ao divulgar os arquivos, pois a maioria “não gosta de falar de traição”.

A maior parte do que ele contou ao oficial de polícia na cidade próxima de Jekabpils, segundo Taskovs, “foi de meras besteiras” que não prejudicaram ninguém, a não ser seu vizinho, preso durante um ano por assistir a pornografia. 

Ele disse que a KGB já sabia a maior parte do que ele colocou em centenas de relatórios, incluindo detalhes de um grupo ambientalista semiclandestino que ajudou a lançar o movimento pró-independência da Letônia nos anos 1980. 

Habilidoso, ele se ofereceu para fazer carteiras de identidade para os 3.000 membros, e deu cópias à KGB. “Eu lhes disse absolutamente tudo: nomes, lugares, tudo”, admitiu.

A maioria dos que estão “nas sacolas”, porém, são como Ojars Rubenis, ex-apresentador de um popular programa de televisão da era soviética, “Labvakar”. Admirado por ajudar a promover a independência letã, agora ele foi identificado como um agente da era soviética, junto de outros dois apresentadores. 

“Não sou culpado”, disse Rubenis por telefone. Comentando que parentes dele foram enviados à Sibéria pelas autoridades soviéticas, ele perguntou: “Por que eu trabalharia para a KGB?”.

Lidija Lasmane, veterana de 93 anos do movimento dissidente da Letônia na era soviética, aplaudiu a divulgação. 

Com muitos de sua geração mortos, porém, ela disse que é tarde demais para servir à verdade histórica ou acertar contas com algo que descreve como uma questão moral fundamental: “Como uma pessoa perfeitamente normal se torna uma besta pronta para trair amigos, familiares e o país?”.

Ela disse que é verdade, como afirmaram muitos já denunciados como colaboradores da KGB, que o sistema soviético os colocava sob terrível pressão, ameaçando carreiras profissionais e parentes.

“Mas todo indivíduo tem uma opção no final”, acrescentou Lasmane, que foi enviada por três vezes a campos de prisioneiros soviéticos, incluindo um em Vorkuta, local temível no arquipélago Gulag.

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

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