Sob Trump, escritório da fé criado por Bush perde coordenação

Agência que fomenta assistência social via entidades religiosas fica sem chefe e com regras dúbias

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Nova York

Criado há 18 anos pelo republicano George W. Bush para coordenar a atuação de organizações religiosas que desenvolvem trabalhos sociais, o chamado "escritório da fé" está à deriva sob o governo de Donald Trump.

Desde que o também republicano assumiu o cargo, em janeiro de 2017, não indicou um nome para comandar o braço da Casa Branca responsável por repassar recursos federais a entidades religiosas e laicas para financiar programas sociais desenvolvidos em níveis estaduais e locais.

É incomum que isso ocorra, diz Stanley Carlson-Thies, fundador e diretor sênior da Institutional Religious Freedom Alliance (Aliança Institucional para Liberdade Religiosa, em tradução livre). “Nenhum presidente demorou tanto”, diz.

trump, bush e obama
O presidente americano Donald Trump e seu antecessor Barack Obama, sentados, observam George W. Bush no funeral de seu pai, o também ex-presidente George H.W. Bush - Alex Brandon/AFP

Nenhum, no caso, se refere a Barack Obama, que substituiu Bush na Casa Branca. O democrata decidiu se concentrar em comunidades religiosas e políticas nas quais achava que esses grupos podiam desempenhar papel relevante.

Mudou o nome: o escritório da Casa Branca para iniciativas comunitárias e baseadas na fé perdeu o “comunitárias” e ganhou a expressão “parcerias com a vizinhança”.

 Trump deu seu toque pessoal e, em maio de 2018, decidiu relançar a entidade e trocar o final do nome (agora é escritório da Casa Branca para iniciativas de fé e oportunidades). E parou nisso.

“Obama conversou com especialistas para saber o que poderia ser melhorado no escritório. Eu levei gente para falar com Obama, conta Carlson-Thies. “Trump possivelmente não tinha conexões para decidir quem faria parte do governo. Talvez por vir do ramo imobiliário, e não da política, ele não sabia como queria fazer isso”, diz.

“Ele sabia o queria fazer a respeito de fronteira, comércio, liberdade religiosa, mas não tinha ideias fortes sobre a iniciativa baseada em fé”, sugere o fundador da aliança.

Ainda assim, os centros continuam tocando seus projetos, porque o dinheiro que repassa está contemplado no orçamento das 13 agências federais —inclusive Educação e Comércio— que os abrigam. Elas fazem a ponte com a administração federal e selecionam iniciativas que disputam o dinheiro.

"Ajudaria se houvesse alguém na Casa Branca que coordenasse e dissesse como o presidente gostaria que eles conduzissem seu trabalho”, diz Carlson-Thies.

Trump também eliminou uma provisão criada por Obama que estabelecia requerimentos para proteger as crenças religiosas dos beneficiários dos programas que recebem recursos federais.

A regra exigia, por exemplo, que as organizações notificassem por escrito os atendidos pelos serviços sobre seus direitos religiosos —sem tentativas de conversão.

Para Liz Reiner Platt, da Columbia Law School, ao retirar a provisão, o presidente estaria tentando reduzir a liberdade religiosa dos beneficiários. O temor é que as entidades rejeitem beneficiários que não se adaptem a seus princípios. Um casal gay que busque adotar um filho, por exemplo, é uma figura pouco acolhida em dados segmentos cristãos conservadores.

“Acho que a administração Trump tenta produzir uma regulação dirigida para organizações baseadas em fé. Com o tempo, os recursos devem mudar de entidades laicas para religiosas”, avalia.

Platt é uma das vozes críticas ao escritório, por considerar que a atuação dessas entidades se equilibra na tênue linha entre o que é legal e o que arrisca ferir a Primeira Emenda da Constituição dos EUA, que versa sobre a garantia do livre exercício religioso.

Em tese, as organizações são proibidas de exercer as atividades centrais de igrejas, como culto, educação religiosa ou proselitismo. “Não acho que muitos americanos sabem disso, e isso só vai piorar depois de eliminarem uma informação tão importante sobre seu direito”, diz.

Ira Lupu, professor da Escola de Direito da Universidade George Washington, concorda que a mudança abre brecha para que os grupos discriminem com base em sua fé.

“Trump manda sinais de que alguns grupos podem receber dinheiro do governo e outros, ser excluídos”, diz. “Está mais conservador do que Bush. Você tem que atender a todos que precisam.”

Ele critica a eficácia dessas instituições em relação a entidades laicas. Não há estudos que comprovem a eficácia maior de uma ou de outra, mas as religiosas recebem mais reclamações.

Outro ponto contestado é o monitoramento a que os grupos são sujeitos, uma incógnita segundo os especialistas.

Lupu não está sozinho. Robert Boston, diretor de comunicações da Americans United for Separation of Church and State (algo como americanos unidos pela separação de Igreja e Estado), também lamenta não haver estudos sobre os programas das entidades.

“Não tenho ciência de dados que respaldem isso. Grupos religiosos oferecem muitos serviços nos EUA, mas não são equipados ou preparados para fazer um trabalho que outras agências poderiam fazer”, diz.

Para ele, quando o governo confia em grupos religiosos para tocar os programas, os beneficiários “podem se sentir pressionados a adotar a atividade religiosa como uma condição para conseguir ajuda”.

Marvin Olasky é um dos expoentes do conservadorismo compassivo, ideia por trás do escritório e que defende que o governo transfira a grupos religiosos a responsabilidade por programas sociais. Atualmente editor da revista World, ele foi um dos gurus de Bush para a criação do escritório.

Para Olasky, as entidades religiosas são mais efetivas, por exemplo, do que o governo federal, e produzem resultado também por ajudar espiritualmente quem precisa.

Para ele, ninguém que não creia deve ser forçado a recorrer a uma organização religiosa, “mas é preciso deixar as entidades ajudarem as pessoas como acharem melhor”. “Sou a favor de mais liberdade”, diz.

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