Descrição de chapéu The New York Times

Com ajuda dos EUA, China usa DNA para rastrear seus cidadãos

Autoridades chamam processo de check-up gratuito; cidadãos dizem que não autorizaram uso do DNA

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Pequim

Autoridades chinesas tiraram sangue do muçulmano Tahir Imin, de 38 anos. Especialistas fizeram uma tomografia do rosto, gravaram sua voz e tiraram impressões digitais. Não se deram ao trabalho de examinar seu coração ou rins. E rejeitaram o pedido dele de ver os resultados.

Quando ele questionou o motivo, recebeu uma resposta improvável. "Você não tem o direito de perguntar sobre isso”, contou Imin. “Se quiser saber mais, procure a polícia.”

Grupo de uigures em Kashgar, China
Grupo de uigures em Kashgar, China - 21.nov.10/AP

​Imin foi um dos milhões de cidadãos que passaram pelo procedimento, uma campanha chinesa de vigilância e opressão. Para fundamentar o projeto, as autoridades chinesas estão colhendo amostras de DNA. E conseguiram apoio corporativo e acadêmico dos Estados Unidos para isso.

A China quer obrigar os uigures  – um grupo étnico predominantemente muçulmano — a ser mais subservientes ao Partido Comunista. O país encarcerou até um milhão de pessoas. Elas foram levadas para o que o governo chinês chamou de campos de “reeducação”. Entidades de defesa dos direitos humanos condenam a medidas.

De acordo com ativistas uigures, a coleta de material genético é fundamental na campanha movida por Pequim. As autoridades chinesas, que estão construindo um amplo banco de dados nacional de amostras de DNA, citaram os benefícios dos estudos genéticos no combate ao crime.

Para aumentar sua capacidade de trabalhar com DNA, cientistas ligados à polícia chinesa utilizam equipamentos fabricados pela Thermo Fisher, uma empresa de Massachusetts. Para traçar comparações com o DNA uigur, utilizam material genético de pessoas de todo o mundo, fornecido por Kenneth Kidd, renomado geneticista da Universidade Yale.

Na semana passada, a Thermo Fisher anunciou que não vai mais vender seus equipamentos em Xinjiang, região que concentra a campanha de rastreamento dos uigures. Em comunicado, a empresa disse que está cooperando com autoridades dos EUA para descobrir como sua tecnologia está sendo usada.

Kidd declarou que não tinha conhecimento de como o uso do material estava sendo feito. Ele disse que acreditava que os cientistas chineses estavam respeitando as normas científicas, que exigem o consentimento informado dos doadores de DNA.

A campanha da China representa um desafio direto à comunidade científica e como ela disponibiliza conhecimentos de vanguarda ao público. O projeto utiliza em parte bancos de DNA públicos e tecnologia comercial, boa parte fabricada ou administrada nos Estados Unidos.

Por sua parte, os cientistas chineses contribuem com amostras de DNA uigur para o banco de dados global, potencialmente violando normas científicas. A cooperação da comunidade científica mundial “legitima esse tipo de espionagem científica”, disse Mark Munsterhjelm, professor assistente da Universidade de Windsor, no Oregon, que acompanhou de perto a utilização de tecnologia americana em Xinjiang.

Em Xinjiang, no noroeste da China, o programa ficou conhecido como “checkups para todos”. Desde 2016, quase 36 milhões de pessoas teriam participado da campanha, segundo a Xinhua, a agência oficial de notícias da China.

As autoridades colheram amostras de DNA, imagens de íris e outros dados pessoais, segundo uigures e entidades de direitos humanos. Não está claro se alguns habitantes da região participaram mais de uma vez, porque Xinjiang tem 24,5 milhões de habitantes.

O governo de Xinjiang negou, em comunicado, que colhe amostras de DNA como parte de checkups médicos gratuitos. Disse que os equipamentos de DNA, comprados por autoridades de Xinjiang, eram para “uso interno”.

A China domina a cidade de Xinjiang com mão de ferro há décadas. Nos últimos anos Pequim atribuiu aos uigures uma série de ataques terroristas lançados em Xinjiang e outras partes do país, incluindo um incidente em 2013, em que um motorista jogou seu veículo contra duas pessoas na praça Tienanmen, em Pequim.

No final de 2016 o Partido Comunista lançou uma campanha para converter os uigures e outros grupos minoritários de maioria muçulmana em defensores leais de Pequim. O governo prendeu milhares em instalações que descreveu como campos de treinamento profissional e uma maneira de fugir da pobreza, do atraso e do islamismo radical.

Ao mesmo tempo o governo começou a colher amostras de DNA. 

O geneticista Kenneth Kidd visitou a China pela primeira vez em 1981. Desde então continuou curioso em relação ao país. Assim, em 2010, ele aceitou um convite para viajar a Pequim com todas as despesas pagas.

Kidd tem 77 anos e é uma figura iminente no campo da genética. Professor de Yale, ele ajudou a tornar as provas de DNA mais aceitáveis nos tribunais dos EUA. Seus anfitriões chineses eram cientistas do Ministério da Segurança Pública. Nessa viagem, Kidd conheceu Li Caixia, a médica legista chefe do Instituto de Ciência Forense do Ministério.

O relacionamento entre eles se aprofundou. Em dezembro de 2014, Li chegou ao laboratório de Kidd para passar 11 meses trabalhando com ele. Quando retornou à China, ela levou algumas amostras de DNA. “Pensei que estávamos compartilhando amostras para pesquisas colaborativas”, disse Kidd.

O geneticista não é o único estrangeiro renomado a ter cooperado com as autoridades chinesas. Bruce Budowle, professor da Universidade do Norte do Texas, diz em sua biografia online que “trabalhou ou está trabalhando” como membro de um comitê acadêmico do Instituto de Ciência Forense do Ministério.

Um porta-voz da universidade, Jeff Carlton, disse em comunicado que o papel de Budowle junto ao ministério é “de natureza meramente simbólica” e que ele não realizou “nenhum trabalho para o ministério”.

Em 2014, pesquisadores do ministério publicaram artigo descrevendo uma maneira de cientistas diferenciarem um grupo étnico de outros. O artigo citou, por exemplo, a possibilidade de distinguir uigures de indianos.

Os autores do texto disseram que usaram 40 amostras de DNA tiradas de uigures na China e amostras de outros grupos étnicos, vindas do laboratório de Kidd na Universidade Yale. Em pedidos de patente registrados na China em 2013 e 2017, pesquisadores do ministério descreveram maneiras de classificar pessoas por etnia, examinando sua composição genética.

Eles colheram material genético de uigures e o compararam com DNA de pessoas de outros grupos étnicos. Em texto de 2017, os pesquisadores explicaram que seu sistema ajudaria “a buscar a origem geográfica do DNA de suspeitos deixado em cenas de crimes”.

Para comparações externas, eles utilizaram amostras de DNA fornecidas pelo laboratório de Kidd, segundo o texto de 2017. Também usaram amostras do Projeto Mil Genomas, um catálogo público de genes de todo o mundo.

Paul Flicek, membro do comitê de direção do Projeto Mil Genomas, disse que o uso de seus dados não é sujeito a restrições e que “não há problema evidente” se os dados forem usados para determinar a origem de uma amostra de DNA.

Pesquisadores do governo chinês também contribuíram com os dados de 2143 uigures para o Banco de Dados de Frequência de Alelos, uma plataforma de pesquisas online dirigida por Kidd. Até 2018, essa plataforma era financiada pelo Departamento de Justiça dos EUA.

Conhecido como Alfred, o banco de dados contém informações de DNA de mais de 700 povos de todo o mundo. Essa partilha de dados pode violar as normas científicas sobre consentimento informado, porque não está claro se os uigures ofereceram suas amostras de DNA às autoridades chinesas voluntariamente, disse Arthur Caplan, diretor fundador da divisão de ética médica da Escola de Medicina da Universidade de Nova York.

Para ele, “ninguém deve ter seus dados em um banco de dados sem seu consentimento expresso”.

Em 2015 Kidd e Budowle discursaram numa conferência na cidade chinesa de Xi’an. A conferência foi patrocinada em parte pela Thermo Fisher, empresa fortemente criticada por suas vendas de equipamentos à China, e a Illumina, uma firma de San Diego que produz instrumentos para o sequenciamento de genes. 

A China vem intensificando seus gastos com pesquisas médicas e saúde. O mercado chinês de equipamentos de sequenciamento genético e outras tecnologias movimentou US$ 1 bilhão em 2017 e pode mais que dobrar em cinco anos, segundo a empresa de pesquisas CCID Consulting.

Mas o mercado chinês é pouco regulado. Nem sempre fica claro para onde vão os equipamentos e para o que são usados. A Thermo Fisher vende desde instrumentos de laboratório até kits de exames forenses e máquinas de mapeamento de DNA, que ajudam cientistas a decifrar a etnia de uma pessoa e identificar doenças.

Segundo seu relatório anual de 2017, a China foi responsável por 10% de seus US$ 20,9 bilhões de receita. A Thermo Fisher emprega quase 5 mil pessoas na China.

Em fevereiro de 2013, segundo um pedido de patente, seis pesquisadores do ministério disseram que os equipamentos da marca Applied Systems, da Thermo Fisher, além de outras empresas, ajudaram o ministério a analisar as amostras de DNA das etnias han, uigur e tibetana na China.

Os pesquisadores disseram que é preciso entender como diferenciar essas amostras de DNA para combater o terrorismo “porque esses casos estão ficando mais difíceis de elucidar”.Os pesquisadores disseram que obtiveram 95 amostras de DNA de uigures, algumas fornecidas pela polícia.

Outras amostras teriam sido fornecidas voluntariamente por uigures. A Thermo Fisher foi criticada pelo senador republicano Marco Rubio e outros que pediram ao Departamento do Comércio americano que proíba empresas americanas que vender à China tecnologia que possa ser utilizada para a vigilância e o rastreamento de pessoas.

Na semana passada, a Thermo Fisher disse que vai parar de vender seus equipamentos em Xinjiang. Decisão que afirmou “é coerente com os valores, o código de ética e as políticas” da empresa.

Legisladores e autoridades dos EUA estão analisando com cuidado a situação em Xinjiang. A administração Trump estuda a possibilidade de impor sanções a funcionários e empresas chineses, devido ao tratamento dado pela China aos uigures.

Tradução de  Clara Allain ​

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