Congoleses deixam Brasil fugindo da crise e morrem no mar na Colômbia

Refugiados tentavam chegar aos EUA; 17 corpos foram achados e barco tinha mais de 30 pessoas

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Mayu Sylvie, que perdeu o irmão no acidente 
Mayu Sylvie, que perdeu o irmão no acidente  - Jardiel Carvalho/Folhapress
São Paulo

“A comunidade congolesa do Brasil está profundamente triste de anunciar a morte prematura das mais de 20 compatriotas que viviam no Brasil em um naufrágio entre a Colômbia e o Panamá”.

O comunicado fúnebre foi postado nas redes sociais com uma série de fotos. Nelas, casais, crianças, jovens e mães com bebês sorriem.

Todos moravam na periferia de São Paulo e embarcaram em uma longa viagem por terra e mar rumo aos EUA, onde esperavam conseguir entrar, apesar da falta de documentos, e buscar uma vida melhor.

A aventura terminou abruptamente no mar na Colômbia na madrugada da última segunda-feira (28), quando o barco onde estavam naufragou. A capacidade era para 20 pessoas, mas, segundo testemunhas, havia 32. Ninguém usava colete salva-vidas.  

Até agora, foram encontrados 17 corpos: seis mulheres, duas delas grávidas, três homens e oito crianças. Apenas duas sobreviventes foram localizadas —uma congolesa que perdeu o marido e os quatro filhos e a irmã dela.

Segundo John Beyazo, vice-presidente da Comunidade Congolesa do Brasil (CCB), as vítimas faziam parte de um grupo de 150 pessoas que deixou SP entre 8 e 12 de janeiro.

É cada vez mais comum que refugiados da República Democrática do Congo (RDC) assentados no Brasil migrem para os EUA fugindo da pobreza e da crise econômica, afirma Beyazo. Ele diz que o fluxo começou em 2014 e foi crescendo. Agora, “todo dia tem alguém indo”. “Muitos perderam o emprego por causa da crise e preferem arriscar a vida a morrer aqui de fome”, diz.

“O africano vem para o Brasil e deixa a família lá na miséria”, completa Joss Bola, secretário da CCB. “Todo mundo conta com o apoio dele. Só que aqui a gente está trabalhando só para comer e pagar a casa. E a gente sabe como a família sofre lá.”

Dos refugiados reconhecidos entre 2007 e 2017 no Brasil, os de nacionalidade congolesa ocupam o segundo lugar, atrás apenas dos sírios.

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Caminho dos congoleses - Arte Folha

A RDC vive uma das crises humanitárias mais graves do mundo, classificada como emergência máxima pela ONU, e tem sido castigada por guerras, ataques violentos de grupos armados e surtos de ebola. Em 2018, havia 5 milhões de congoleses deslocados interna e externamente.

Segundo a CCB, o naufrágio na Colômbia foi a maior tragédia envolvendo pessoas da comunidade a caminho dos EUA. Já houve mortes esporádicas, assim como deportações. A maioria chega lá.

Muitos dos mortos no naufrágio eram vendedores ambulantes no bairro do Brás. “Em dezembro, a polícia confiscou toda a mercadoria que eles tinham armazenado. Como eles iam viver? Decidiram ir embora”, diz Beyazo.

A maioria morava no país havia algum tempo, como Yazaza Kanza, 38, que vivia havia seis anos em SP e trabalhava havia cinco em uma empresa. Casou-se, a mulher engravidou e então ele foi demitido. Os dois morreram no mar. “Ainda nem contei para a minha mãe, que está no Congo”, diz a irmã dele, Mayu Sylvie, 29.

A situação financeira dela também é crítica. Após perder o emprego no Brasil, seu marido voltou para a RDC com o filho. Ela ficou com outra filha, mas também foi demitida.

Grávida, não vê perspectivas. Mesmo depois do que houve com o irmão, só não vai para os EUA porque não tem dinheiro — a viagem, que dura cerca de dois meses, custa em torno de US$ 2.500 (R$ 7.800).

Segundo Beyazo, imigrantes de outros países africanos que moram no Brasil também têm seguido a rota. Para a maioria, os EUA nem são o destino final. “Eles ficam uns meses e vão para o Canadá. Lá é terra de imigrante”, diz Joss Bola.

Ao menos 57 mil pessoas foram pegas tentando entrar ilegalmente no Panamá via norte da Colômbia nos últimos cinco anos, segundo a Reuters.

Com 4.000 habitantes, a praia de Capurganá, de onde partiram os congoleses, fica na cidade de Acandí, departamento de Chocó, e tornou-se rota para esses imigrantes. Só neste mês, de 300 a 500 passaram por lá, vindos do Congo, Cuba, Haiti e outros países, diz a prefeita Lilia Córdoba. Em sua gestão só houve um naufrágio do tipo, em 2016, com menos de dez vítimas.

“Até pouco tempo atrás, eles faziam a travessia pela floresta. Agora são levados de barco, por coiotes”, conta.

Segundo testemunhas, quatro barcos partiram juntos e só um voltou para ajudar os náufragos. As duas mulheres que se salvaram e um grupo de 12 que não embarcou receberam assistência, diz a prefeita, mas insistiram em continuar a viagem. “Disseram que preferem morrer a voltar ao seu país.”

O município não tem instituto médico legal nem necrotério refrigerado. “Tivemos que trazer médicos forenses para identificar os corpos por digitais e arcada dentária, pois ficaram muitos dias na água e perderam a identidade física.”

Acredita-se que mais cadáveres possam ser encontrados nos próximos dias. Córdoba ainda não sabe o que acontecerá após a identificação.

As famílias dos desaparecidos também estão no escuro, sem saber se vão recuperar os corpos para os rituais funerários.

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