Drible de Trump no Congresso deve ficar na história como violação extraordinária

Especialista diz que declaração de estado de emergência constituiria abuso de poder

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Charlie Savage
Washington | The New York Times

O anúncio pela Casa Branca, na quinta-feira (14), de que o presidente Donald Trump invocaria poderes de emergência para construir sua muralha na fronteira sem aprovação do Congresso foi uma maneira de escapar a uma crise política que ele criou quanto à paralisação do governo.

Mas embora a medida signifique que o país evitará uma nova paralisação prolongada do governo, especialistas em questões judiciais advertem que os custos para a democracia americana podem ser pesados, em longo prazo.

Em termos de realidades políticas, a declaração permite que Trump mantenha o governo em funcionamento sem ceder aos democratas do Congresso quanto à sua causa política central, e com isso perder prestígio diante de seus partidários mais ferrenhos.

Em termos de realidades legais, a proposta provavelmente será paralisada por contestações judiciais, o que fará com que quaisquer obras concretas baseadas na declaração de um estado de emergência se tornem uma perspectiva incerta e, na melhor das hipóteses, distante.

Mas não importa o que mais venha a acontecer, a disposição de Trump de invocar poderes de emergência para contornar a oposição do Congresso deve ficar na história como uma violação extraordinária das normas constitucionais —e estabelecer um precedente que futuros presidentes, dos dois partidos, poderiam seguir para atingir suas metas políticas de forma unilateral.

"É uma verdadeira ameaça institucional à separação de poderes usar poderes de emergência para permitir que o presidente ignore o Congresso e construa por iniciativa própria uma muralha que nossos representantes eleitos optaram por não custear", disse William Banks, professor de direito da Universidade de Syracuse e coautor de um livro de 1994 sobre as tensões entre os ramos executivo e legislativo do governo, "National Security Law and the Power of the Purse" [lei de segurança nacional e o poder das verbas].

"Isso estabelece o precedente de que um presidente pode, mesmo que não exista uma emergência, usar essa ferramenta para escapar ao processo democrático normal e custear projetos de seu interesse", ele acrescentou.

Os estatutos quanto a poderes de emergência são leis estipuladas pelo Congresso que permitem que o presidente, ao declarar uma crise nacional, tome medidas que normalmente seriam proibidas pela Constituição. A ideia é permitir que o Executivo aja com mais rapidez em circunstâncias prementes.

Embora presidentes da era moderna tenham declarado dezenas de emergências para lidar com diversos problemas, nenhuma delas foi nem de longe tão contestada quanto a medida que Trump está contemplando. 

Banks disse que não encontrou exemplos de um processo em que alguém tenha tentado contestar a base factual para a determinação presidencial de que existe uma emergência, o que não oferece muita orientação quanto ao que os tribunais podem fazer quanto a qualquer contestação judicial.

Especialistas em questões legais apontaram para diversos estatutos que permitem que o governo federal desvie verbas de construção militar e que o governo Trump poderia invocar, em uma situação de emergência.

Uma dessas leis, por exemplo, permite que, em uma emergência, o secretário da Defesa inicie projetos militares de construção necessários para o apoio ao uso das forças armadas e "de outra forma não autorizados pela lei".

Outra lei permite que o Exército suspenda projetos de obras civis durante uma emergência e empregue os recursos assim liberados para ajudar a construir "projetos civis autorizados, construções militares e projetos de defesa civil essenciais para a segurança nacional".

O governo pode tentar combinar esse estatuto a outras leis, afirmando que o Congresso já autorizou a construção de diversas barreiras de fronteira.

O presidente Donald Trump durante discurso, em Washington, no qual declarou estado de emergência
O presidente Donald Trump durante discurso, em Washington, no qual declarou estado de emergência - Jim Young/Reuters

Ainda assim, nenhuma dessas leis se enquadra perfeitamente ao caso, dizem os especialistas, o que vai gerar disputas técnicas que darão aos litigantes muito que discutir no tribunal.

Mas uma questão mais fundamental quanto ao tipo de precedente histórico que a manobra de Trump estabelece é determinar se os tribunais vão se permitir avaliar que de fato existe uma emergência nacional na fronteira que uma muralha resolveria.

Os críticos da medida apontam que o número de pessoas que cruzam a fronteira ilegalmente é muito mais baixo do que uma geração atrás. O fenômeno relativamente novo de caravanas de migrantes consiste principalmente de famílias que se apresentam às autoridades na fronteira e solicitam asilo, em lugar de tentarem ingressar em território americano por conta própria.

A maioria das drogas ilegais é contrabandeada para os Estados Unidos pelos portos de entrada. E não houve exemplo, na era moderna, de um ataque terrorista em solo americano cometido por alguém que tenha cruzado clandestinamente a fronteira entre os Estados Unidos e o México.

Mas ainda assim o Departamento da Justiça poderia certamente argumentar que os tribunais não deveriam considerar os fatos, e sim acatar a determinação presidencial de que existe uma emergência.

Há um longo histórico de relutância dos tribunais quanto a impor seu pensamento, de preferência ao pensamento presidencial, em questões de segurança; também houve situações em que eles determinaram que o caso era uma "questão política" que os dois ramos do governo eleitos politicamente deveriam decidir entre eles.

O Congresso aprovou a lei abrangente que determina quando e como um presidente pode invocar estados de emergência, a Lei de Emergências Nacionais de 1976, na era de reformas pós-Watergate.

Na época, embora conferindo amplos poderes aos presidentes para decidir se uma emergência existe, os legisladores também criaram um forte mecanismo para prevenir abusos: o Congresso poderia decretar o fim do estado de emergência por meio de uma resolução, com votação por maioria simples em suas duas câmaras.

Para impedir que os aliados partidários do presidente bloqueiem uma medida como essa, a lei dispõe que, caso uma das casas do Congresso proponha uma resolução nesse sentido, a outra deve submetê-la a votação em no máximo 18 dias.

Os democratas da Câmara deixaram claro que aprovarão uma resolução nesse sentido se Trump declarar uma emergência na fronteira, o que forçaria os republicanos do Senado a votar para decidir a legitimidade da ação presidencial.

Embora o senador Mitch McConnel, republicano do Kentucky e líder da maioria no Senado, tenha declarado que apoiaria Trump, alguns poucos votos dissidentes entre os senadores republicanos bastariam para aprovar a resolução.

Mas o mecanismo de controle foi severamente erodido por uma decisão da Suprema Corte em 1983. Os juízes determinaram que, para que tenha efeito legal, uma resolução do Congresso precisa ser apresentada ao presidente para assinatura ou veto, como acontece com os projetos de lei.

Um ano depois, o Congresso revisou a lei de emergências para substituir o tipo de resolução que entra em vigor imediatamente pelo tipo de resolução que um presidente pode vetar.

Porque derrubar um veto requer dois terços dos votos em ambas as câmaras, a mudança tornou muito mais difícil, em termos de matemática política, bloquear uma declaração de emergência dúbia. Como resultado, mesmo que o Senado aprovasse uma resolução, seria improvável que o Congresso derrubasse o veto inevitável de Trump a ela, se a maioria dos congressistas republicanos se mantiverem leais ao presidente.

Diante desse cenário, Elizabeth Goitein, que comandou um recente estudo sobre os poderes de emergência presidenciais no Brennan Center for Justice, na escola de direito da Universidade de Nova York, disse que a medida de Trump constituiria abuso de poder e geraria o risco de abrir caminho para que presidentes invoquem cinicamente a existência de uma emergência a fim de escapar às restrições democráticas ao seu poder.

"Cada vez que um presidente faz alguma coisa que seria impensável sob um governo anterior, e cada vez que ele age de maneira que estamos acostumados a ver em regimes autoritários, um pedacinho de nossa democracia morre —e nesse caso o pedaço é bem grande", ela disse. "Sei qual é o potencial de que essas leis voltem a ser alvo de abusos, depois da primeira vez". 

Tradução de Paulo Migliacci

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