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A história de Oswaldo Aranha, brasileiro citado por Bolsonaro em seu discurso de chegada a Israel

Diplomata chefiou Assembleia Geral da ONU que decidiu sobre a partilha da Palestina, em 1947

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O político e diplomata Oswaldo Aranha - Divulgação
 
Porto Alegre | BBC News Brasil

Quase seis décadas após sua morte, é fácil encontrar referências a Oswaldo Aranha em cardápios de restaurantes cariocas —onde um filé batizado em sua honra é prato tradicional— ou em dezenas de placas de ruas pelo Brasil. Mas em sua época, poucos brasileiros tiveram tanta projeção mundial.
 
A curiosidade pelo advogado, político e diplomata Oswaldo Euclides de Sousa Aranha (1884-1960) deve ganhar impulso com a visita de Bolsonaro a Israel.
 
"É motivo de muito orgulho para mim e para o povo do meu país o papel que o nosso chanceler Oswaldo Aranha desempenhou na criação do nosso Estado de Israel. Eu disse nosso", afirmou Bolsonaro em discurso ao lado do primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, durante cerimônia de recepção à comitiva brasileira neste domingo (31).
 
Em Jerusalém, ponto alto da agenda, uma praça central mantida com doações de empresas e entidades brasileiras homenageia Aranha. Na internet, a página dedicada ao lugar lembra-o como "chanceler do Brasil e presidente da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, que deu seu apoio à decisão da ONU pela Partilha da Palestina em 1947, que levou à criação do Estado de Israel".
 
Em Tel Aviv, Ber-Sheva e Ramat-Gan, ruas receberam o nome do brasileiro. Para um presidente interessado em estreitar laços com Israel, a memória do compatriota representa um ativo simbólico de peso.
 

Partilha da Palestina

Embora a aprovação pela ONU da partilha da Palestina, em 29 de novembro de 1947, seja menos celebrada em Israel do que a proclamação do Estado judeu, em 14 de maio do ano seguinte, as duas decisões estão intimamente relacionadas. A ideia de um lar nacional judaico na Palestina remontava ao final do século 19, mas a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto deram-lhe uma atualidade dramática.
 
Esgotado pelo conflito na Europa e sob pressão dos Estados Unidos, o Reino Unido, que controlava a região desde 1917 com crescente dificuldade diante das rebeliões de judeus e árabes, fazia planos para se retirar. Em meio a essa turbulência, a ONU, recém-criada para substituir a Liga das Nações, encarregou uma comissão de elaborar um plano de partilha da região entre judeus, árabes e comunidade internacional.
 
O papel de Aranha à frente da Assembleia Geral de novembro de 1947, a segunda em caráter regular realizada pela organização, é alvo de controvérsia desde que o resultado (33 votos favoráveis, 13 contrários, 10 abstenções e uma ausência) foi proclamado. Para ser adotada, a resolução pela partilha deveria alcançar os votos de dois terços dos países presentes à Assembleia. Partidários da causa da divisão da região, os sionistas (partidários da criação de um Estado judeu) tinham fortes aliados: os governos americano e soviético, além de uma parte dos países da Europa Ocidental e da América Latina. Contra a proposição, alinhavam-se os países árabes e muçulmanos.
 
Nesse cenário, o peso do responsável pela condução dos trabalhos poderia ser decisivo. E foi, como reconhecem especialistas, numa rara unanimidade. "No momento em que compreendeu que a partilha poderia ser aprovada, Aranha teve uma grande ação de bastidores e ajudou a definir o voto de países latino-americanos que queriam ficar bem com o Brasil", afirma Corrêa do Lago.
 
"Na Assembleia Geral, Aranha foi um ótimo político e um articulador fantástico", afirma Maria Luiza Tucci Carneiro, professora aposentada do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP). "O Brasil poderia simplesmente ter votado a favor da partilha e perder. Efetivamente, além de votar, ele colaborou com a vitória [da resolução]", sustenta Fabio Koifman, professor do Departamento de História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).

Chegada inesperada à ONU

O acaso instalou Aranha na cadeira da presidência da Assembleia Geral da ONU. Afastado da política desde o fim do Estado Novo, a ditadura de Getúlio Vargas à qual servira com zelo, o veterano estadista estava nos Estados Unidos em viagem de negócios, em janeiro de 1947, quando foi surpreendido por um convite para assumir o assento que caberia, por rodízio, ao Brasil no Conselho de Segurança da ONU, em razão da morte do embaixador designado para a missão.
 
Como adversário do governo do presidente Eurico Gaspar Dutra, viu no gesto uma demonstração de espírito público e aceitou a indicação. Como ex-embaixador em Washington e ex-chanceler, estava à vontade em Flushing Meadows, onde ficava a sede provisória da ONU, no Estado de Nova York.

Em abril, o Reino Unido pediu a convocação de uma Assembleia Geral especial para tratar da questão da Palestina, e Aranha foi novamente acionado. Acabou assumindo a presidência dos trabalhos, por proposta dos Estados Unidos ("Muito dependerá da coragem, imparcialidade e firmeza do presidente", escreveu o secretário de Estado interino, Dean Acheson).
 
A Assembleia Geral optou por nomear uma comissão para investigar o caso da Palestina e fazer recomendações à organização. Depois de uma curta passagem pelo Rio, diante da intenção do governo Dutra de se aproximar dos Estados Unidos, Aranha foi novamente enviado a Nova York para participar da Assembleia Geral regular, em setembro.
 
Mas desta vez o Itamaraty não simpatizava com uma nova presidência de Aranha, e os EUA haviam se comprometido com o australiano Herbert Evatt. Os delegados latino-americanos, "pela primeira vez como um bloco indestrutível", nas palavras do diplomata Sérgio Corrêa da Costa, genro de Aranha, rebelaram-se e impuseram sua candidatura. No segundo escrutínio, obteve 29 votos contra 22 de Evatt.
 

Temas espinhosos na ONU

Além da Palestina, a Assembleia Geral de setembro preparava outros temas espinhosos para Aranha.
 
Em maio, o Supremo Tribunal Eleitoral tornara o PCB ilegal, e o governo Dutra preparava-se para romper relações com a União Soviética. Jornais soviéticos passaram a atacar o mandatário brasileiro, acusado de "uma paixão mórbida pela Alemanha fascista".
 
O Rio de Janeiro contra-atacou orientando Aranha a votar contra a Ucrânia como novo Estado-membro da ONU. Ao mesmo tempo, a delegação americana pedia-lhe que nomeasse um soviético para uma comissão dedicada à Palestina. "Preciso de amparo e apoio. Se não nos quiser dar, pode dispor do meu lugar", queixou-se Aranha ao chanceler Raul Fernandes.
 
A consagração de Aranha veio no final de novembro, durante o debate do relatório do comitê sobre a Palestina, que recomendara um plano de partilha da região apoiado fervorosamente pelos sionistas. O texto constituía uma rara unanimidade entre americanos e soviéticos, mas a exigência do quórum mínimo de dois terços de votos favoráveis tornava sua aprovação dependente de apoio mais amplo.
 
Assessor da Agência Judaica e futuro embaixador de Israel na ONU, Abba Eban relatou "tensão desesperadora" entre os simpatizantes da partilha por temor de não alcançar o mínimo de votos. Em uma sessão nervosa no dia 27, uma quinta-feira, véspera de feriado de Ação de Graças nos Estados Unidos, Aranha usou sua autoridade para suspender a sessão. Assim, a causa sionista ganhava mais de 24 horas para conquistar votos. "Aranha tinha a mão mais rápida no martelo que eu já vi", escreveu Eban. Afinal, no sábado, 29 de novembro, em votação acompanhada pelo rádio no mundo inteiro, a ONU sacramentou a partilha. 

Antissemitismo sob Vargas

Se há consenso sobre a eficácia de Aranha em favor da causa do Estado judeu, sua passagem pelo Ministério das Relações Exteriores durante o Estado Novo rendeu-lhe uma amarga coleção de críticas póstumas.
 
No início dos anos 1980, com a publicação de "Antissemitismo na Era Vargas", Maria Luiza Tucci Carneiro revelou pela primeira vez a existência de circulares secretas do Itamaraty contra a concessão de vistos de entrada no Brasil a judeus.
 
Prefaciada por Antonio Candido ("Este livro é uma contribuição notável para o estudo da atitude do governo brasileiro em relação aos judeus no período Vargas, isto é, justamente quando eles sofriam a maior perseguição de que foram vítimas na história contemporânea"), a obra causou furor.
 
Na época, porém, o regime militar (1964-85) mantinha classificada a maior parte dos arquivos do Itamaraty. Pressionado por pesquisadores e intelectuais, o governo brasileiro começou a abrir a documentação do período a pesquisadores nos anos 1990.
 
As evidências de que Aranha teria nutrido preconceitos normalmente identificáveis como antissemitas nos anos 1930 são fartas. Ao então interventor de São Paulo, Adhemar de Barros, ele escreveu em 20 de outubro de 1938: "Necessitamos, entretanto, de correntes migratórias que venham lavrar o solo, ao mesmo tempo que se identifiquem com o ambiente brasileiro, não constituindo, jamais, elementos subversivos ou dissolventes e com tendências a gerar quistos raciais, verdadeiros corpos estranhos no organismo nacional, tal como acontece com os israelitas e os japoneses. (...) O israelita, por tendência milenar, é radicalmente avesso à agricultura e não se identifica com outras raças e outros credos. Isolado, há ainda a possibilidade de vir a ser assimilado pelo meio que o recebe, tal como aconteceu, em geral, no Brasil, até a presente época. Em massa, constituiria, porém, iniludível perigo para a homogeneidade futura do Brasil".
 
Para Maria Luiza Tucci Carneiro, mais grave do que essas manifestações são as políticas migratórias implementadas pelo Estado Novo com a participação do então chanceler. Ela contabiliza um total de mais de 14 mil vistos de entrada negados entre 1938 e 1945 com base em critérios raciais, que excluíam expressamente "israelitas".
 
"A posição de Oswaldo Aranha em 1947 pode ser caracterizada como um ato político, mas não humanitário. Ele estava afinado com a política antissemita do Estado brasileiro", afirma a historiadora.
 
Na opinião de Koifman, a figura de Aranha foi apropriada, desde sua morte, por "construtores de mitos", entre os quais o historiador inclui uma parcela do movimento sionista. "Saber se ele era filossemita, antissemita ou judeófobo é delicado. Deve-se levar em conta o que ele sabia a respeito da situação dos judeus na Europa? Tinha como saber do Holocausto em 1938 se a perpetração desse genocídio só se iniciou em 1941?", questiona.
 
Para o pesquisador, em termos objetivos, quando Aranha esteve "numa situação em que poderia ser decisivo, como ao incluir em circular a permissão para entrada no Brasil de parentes de segundo grau, ele não foi dos piores".
 

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Versão do Bar Brasil para o filé à Oswaldo Aranha, carne coberta de alho frito servida com arroz e batata - Zô Guimarães/Folhapress

Em defesa de Aranha

A defesa de Oswaldo Aranha é feita com eloquência por Pedro Aranha Corrêa do Lago. Escritor, bibliófilo e neto do diplomata, ele é autor de "Oswaldo Aranha: uma fotobiografia", volume de 412 páginas lançado em 2017. A obra revisita a vida eletrizante do biografado, da infância em Alegrete (RS) à velhice, afastado da política. Corrêa do Lago garante que não se preocupou em produzir uma hagiografia do avô.
 
"Uma pessoa que lê distraidamente pode pensar: 'Ele está defendendo o familiar'. É claro que sou neto. Minha mãe era filha mais moça de Oswaldo e falava dele no café da manhã, no almoço e no jantar. Mas falei dele o mínimo possível neste livro", comenta.
 
Para o escritor, o Aranha que agiu em 1947 em favor da partilha da Palestina é inseparável do homem que "tinha sido embaixador nos Estados Unidos e tinha amigos judeus". "Você acha que Bernard Baruch (benemérito judeu americano) iria enviar uma carta ao Comitê do Nobel propondo a candidatura de Oswaldo Aranha se se tratasse de um antissemita?", pergunta.
 
Corrêa do Lago comove-se ao ler um trecho de "De Amor e Trevas", volume de memórias do escritor israelense Amós Oz, que narra suas lembranças do 29 de novembro de 1947, aos oito anos, em Jerusalém: "Só se ouvia, vinda do rádio no último volume, a voz profunda e áspera do locutor americano que eletrizava o ar frio da noite, ou poderia ser a voz do presidente da Assembleia, Oswaldo Aranha, do Brasil. Um depois do outro, ele lia os nomes dos últimos países da lista, pela ordem alfabética inglesa, e repetia imediatamente a resposta do representante ao microfone. (...) Então a voz profunda, um tanto rouca, para estremecer o ar por meio do som do rádio, e anunciar o resultado da contagem num tom seco e áspero, mas com indisfarçável regozijo: 'Trinta e três a favor. Treze contra. Dez abstenções e um país ausente da votação. A proposta foi aceita'".
 

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