Descrição de chapéu The Washington Post

Aliados de ditador começam a sentir efeitos da deterioração na Síria

Em áreas governamentais poupadas da violência, pobreza atinge níveis nunca antes vistos

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Liz Sly
Beirute | The Washington Post

​Os sírios que permaneceram leais ao ditador Bashar al-Assad ao longo dos últimos oito anos de guerra expressam insatisfação crescente com seu governo, dado que o padrão de vida no país continua a decair, apesar de o conflito estar terminando.

As condições de vida são péssimas para a maioria dos 19 milhões de sírios que vivem no país devastado, incluindo no um terço do território que permanece fora do controle governamental. Cidades inteiras foram esvaziadas e destruídas. Segundo as Nações Unidas, 89% da população está vivendo na pobreza, dependente de ajuda alimentar internacional.

Mulher passa em frente a retrato de Bashar al-Assad em Damasco
Mulher passa em frente a retrato de Bashar al-Assad em Damasco - Louai Beshara-14.mar.19/AFP

Pela primeira vez, porém, os moradores das áreas pró-governo, que foram poupados do pior da violência, estão sofrendo as privações mais árduas, incluindo os habitantes da capital, Damasco.

Os residentes de Damasco dizem que nos últimos meses a vida ficou mais difícil que em qualquer outro momento dos últimos oito anos, levando ao reconhecimento de que não haverá recuperação rápida dos danos imensos que a guerra causou à economia síria, à tessitura social do país e à sua posição na comunidade internacional.

Até os últimos subúrbios rebeldes de Damasco serem reconquistados, no ano passado, morteiros disparados de territórios sob controle rebelde ainda explodiam regularmente nas ruas da capital, impondo um clima de medo e incerteza.

A conquista do subúrbio de Ghouta Oriental no ano passado pôs fim aos disparos de morteiros, mas não trouxe o alívio pelo qual os moradores esperavam, disse um escritor residente em Damasco que exigiu anonimato para falar porque teme por sua integridade física. “A situação hoje é a pior que já tivemos”, ele disse. “As pessoas mal estão conseguindo sobreviver. A porcentagem de pobres cresce sem parar.”

Uma escassez aguda de combustíveis, gás de cozinha e eletricidade deixou os cidadãos tremendo de frio e no escuro ao longo de um inverno excepcionalmente gelado. A moeda síria, que se desvalorizara tremendamente mas então se estabilizara após o início da guerra, está caindo novamente, levando os preços a subir.

Muitos milhares de homens que passaram anos combatendo nas linhas de frente estão voltando para casa sem a esperança de encontrar trabalho. A economia da guerra alimentou a corrupção em escala inusitada, e, segundo moradores de Damasco, agravou o desafio diário de enfrentar longas filas para obter as necessidades básicas, somando a elas a obrigação de pagar subornos diversos a vários escalões de funcionários públicos.

As grandes expectativas alimentadas pelo governo –de que investidores árabes ricos voltariam a Damasco em grande número, que projetos de reconstrução receberiam financiamento chinês e que as sanções dos EUA seriam levantadas em pouco tempo— não se concretizaram. E parece pouco provável que isso ocorra no futuro próximo.

Os bares e cafés de Damasco ficam cheios à noite, criando a impressão de uma cidade a caminho da recuperação. Mas seus frequentadores representam uma elite minúscula que lucrou com a guerra e cujo consumo deslavado apenas alimenta o ressentimento da grande maioria da população, para quem a vida é uma luta diária pela sobrevivência, segundo moradores.

“A tão falada grande vitória militar não se traduziu numa melhora da qualidade de vida, como se esperava que acontecesse”, comentou Danny Makki, analista e jornalista sírio-britânico que vive em Damasco. “Três a quatro por cento das pessoas detêm a maior parte da riqueza, e para o resto das pessoas a vida é uma luta tremenda.”

“O ambiente é deprimente, e o inverno foi duríssimo”, ele acrescentou. “Mesmo quando havia grupos rebeldes às portas de Damasco, nunca tivemos problemas tão graves do ponto de vista da qualidade de vida.”

Sírios fazem compra em mercado de rua em Damasco; níveis de pobreza atingiu recorde
Sírios fazem compra em mercado de rua em Damasco; níveis de pobreza atingiu recorde - Louai Beshara/AFP

A infelicidade generalizada se reflete na enxurrada inusitada de queixas expressas nas redes sociais por seguidores de Assad, incluindo algumas das celebridades e personalidades de TV que no passado aproveitaram sua fama para angariar apoio para o regime do ditador.

“Vencemos, mas a vitória não faz sentido se não temos mais a pátria que conhecíamos antes”, escreveu o célebre ator Ayman Zedan em post público em sua página no Facebook, refletindo o sentimento de decepção pelo fato de a vitória militar de Assad sobre seus adversários não ter trazido alívio para seus partidários.

“Estamos fartos de promessas nas TVs e rádios”, queixou-se a famosa atriz Shoukran Mortaja em post público dirigido ao “Sr. Presidente” em sua página.

“Vamos deixar que quem não morreu na guerra morra de miséria, frio e preços inflacionados?”, ela perguntou.

Dezenas de pessoas entre seus 54 mil seguidores manifestaram apoio em comentários feitos sobre o post, compartilhado mais de 2.000 vezes. “Tenho certeza de que sua voz chegará ao presidente”, diz um dos comentários. “Estamos com você e somamos nossas vozes à sua.”

Parece que Assad ouviu as queixas. Em discurso que fez em Damasco, em fevereiro, ele adotou tom incomumente defensivo, reconhecendo que algumas pessoas estão sofrendo genuinamente e que a corrupção de autoridades locais está contribuindo para as dificuldades enfrentadas pelo povo.

Mas ele se eximiu da responsabilidade, acusando sírios fora do país de fazerem as críticas mais intransigentes e atribuindo a escassez de produtos de primeira necessidade às sanções americanas.

Economistas e diplomatas ocidentais dizem que as novas sanções impostas pelo Tesouro americano em novembro são, de fato, a causa mais provável da escassez inesperadamente séria de produtos energéticos nos últimos meses.

Para Jihad Yazigi, editor do boletim Syria Report, que trata de negócios e economia, as sanções limitadas impostas pelos EUA e a Europa no início da guerra a indivíduos ligados ao regime de Assad tiveram impacto mínimo sobre os cidadãos comuns. Tirando um período breve, dois anos atrás, quando faltaram combustível e gás devido a uma disputa entre o governo e o Irã, o maior fornecedor de combustível à Síria, o fornecimento da maioria dos produtos energéticos continuou ao longo do conflito nas áreas sob controle governamental.

Mas as sanções mais recentes impostas pelo Tesouro americano visaram as empresas de transporte marítimo que levam combustível e gás à Síria e as impediram de continuar a fazê-lo, por medo de que isso pudesse prejudicar seus negócios em outros países.

Mesmo assim, segundo moradores, a maioria dos sírios atribui a falta de gás e combustível ao governo, refletindo como é profundo o clima de amargura crescente.

“As pessoas não põem a culpa na América, ou pelo menos não a culpa primária. Elas culpam principalmente o governo”, disse o escritor residente em Damasco. “Sabem que o governo é inepto e corrupto.”

O próprio Bashar Assad ainda é imune a críticas. A visão generalizada, segundo o escritor, é que o ditador  não está envolvido no comando cotidiano do país e que os responsáveis por falhas são autoridades corruptas e ineptas e os líderes militares locais empoderados pelo conflito.

Refletindo essa atitude, a atriz incluiu em seu post no Facebook um apelo direto a Assad. “Mando esta mensagem ao senhor porque o senhor é o único que vai nos ouvir, que nos fará uma promessa e a cumprirá”, ela escreveu. “Estamos todos do lado da pátria, mas não queremos que a pátria se coloque contra nós.”

Ninguém prevê uma nova revolta contra Assad por enquanto, pelo menos não nas áreas leais a ele, dizem sírios. Os protestos de 2011, em que milhões de pessoas saíram às ruas para pedir a renúncia do ditador, desencadearam uma guerra que custou a vida de até meio milhão de pessoas, levou ao êxodo de mais de 6 milhões de refugiados e provocou danos de até US$388 bilhões à economia e à infraestrutura nacional, segundo as Nações Unidas.

“Essa é a última coisa que as pessoas querem. As pessoas perderam a capacidade de se importar”, disse o escritor em Damasco. “Não há uma única família que não tenha perdido alguém. As pessoas só querem que a guerra acabe e só estão lutando para sobreviver.”

A onipresença das agências de inteligência também limita as críticas. A detenção e o aparente desaparecimento este ano de Wissam Tayar, conhecido partidário do regime que comandava a popular página do Facebook pró-regime Damasco Agora, assustou muitos partidários do regime hoje descontentes. As razões de sua prisão não estão claras e o paradeiro atual dele é desconhecido, segundo pessoas que o conhecem.

Área destruída em região nos arredores de Damasco
Homem olha para área destruída em região nos arredores de Damasco - Hummam Sheikh Ali/Xinhua

Os sírios debatem se o governo decidiu tolerar as raras críticas expressas por seus partidários ou se simplesmente lhe falta a capacidade de reagir contra todos que se queixam. Mais de 100 mil sírios desapareceram desde 2011 no gulag que é o sistema carcerário do país. Dezenas de milhares de outros foram executados ou morreram sob tortura, segundo a Rede Síria de Direitos Humanos, que mantém um banco de dados de vítimas civis da guerra.

Mas a maioria dessas vítimas era favorável aos chamados pela renúncia de Assad. À medida que diminuem os desafios lançados por uma oposição que abrangia todo um espectro de pontos de vista, desde ativistas democráticos até extremistas jihadistas violentos, as pessoas que se mantiveram leais ao ditador se sentem no direito de expressar suas posições, disse Yazigi.

“Hoje não existe mais essa visão de que as pessoas precisam se manter unidas para fazer frente a um inimigo comum”, ele explicou. “As pessoas estão dizendo: ‘Derrotamos o inimigo comum, então agora vamos definir quem é responsável pela situação catastrófica em que estamos’.”

Mas esse sentimento está levando ao questionamento sobre os rumos futuros da Síria e a sustentabilidade do governo ditatorial da família Assad, segundo um funcionário governamental aposentado que também exigiu anonimato para falar, por preocupações com sua segurança.

Muitos seguidores leais do governo dizem que suas esperanças agora estão voltadas ao processo de paz liderado pela Rússia, que tem o apoio das Nações Unidas. O plano russo prevê reformas à Constituição síria, reformas que incluiriam alguns membros da oposição no governo, possivelmente diluindo o poder absoluto de Assad. A ideia é que tal acordo seria então endossado pelos Estados Unidos e a Europa, abrindo o caminho para o financiamento da reconstrução, a chegada de investimentos do exterior e a reabilitação da Síria pela comunidade internacional.

Mas Assad já manifestou reiteradas vezes sua oposição a qualquer alteração constitucional que seja negociada por outros países.

O funcionário aposentado não apoia a oposição, mas questiona a viabilidade de um regime que não demonstrou nenhuma disposição de fazer concessões, mesmo diante dos desafios imensos que tem pela frente. “Se esta fosse uma partida de basquete, estaríamos num intervalo”, ele comentou. “As pessoas têm a sensação de que a guerra ainda não acabou.”

Tradução de Clara Allain 

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