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Venezuela

Colômbia se mostra pouco dada à xenofobia devido a histórico com Venezuela

Em passado não muito distante, país vizinho deu chances a colombianos que fugiam da pobreza

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Daniel Lansberg-Rodríguez
Evanston (EUA)

Simón Bolívar, o venezuelano libertador dos Andes que dá nome à atual e combatida Revolução Bolivariana de Nicolás Maduro, certa vez caracterizou a Colômbia como uma universidade, a Venezuela como um quartel e o Equador como um convento.

Deixando de lado a terceira e piedosa das repúblicas irmãs de Bolívar (para se concentrar em suas orações), os recentes acontecimentos geopolíticos tornam apropriada uma análise mais detalhada do complexo relacionamento entre a Venezuela e a menor, embora mais próxima, de suas duas principais vizinhas. 

A dissolução da federação da Grande Colômbia, no início dos anos 1830, e as lamentações muito públicas de Bolívar a esse respeito, por algum tempo deixaram um legado um tanto humilhante dos dois lados da fronteira, mas especialmente na Venezuela.

Migrantes venezuelanos cruzam fronteira por rotas ilegais próximas ao rio Táchira para chegar à cidade colombiana de Cúcuta
Migrantes venezuelanos cruzam fronteira por rotas ilegais próximas ao rio Táchira para chegar à cidade colombiana de Cúcuta - Luis Robayo - 27.fev.19/AFP

Desde tempos pré-revolucionários, a Venezuela foi relativamente marginalizada no sistema colonial, recebendo a situação de apenas uma capitania-geral, devido a sua relativa escassez de população e seus recursos limitados em ouro e prata.

Depois da independência, Bogotá passou diretamente de sede do vice-reinado a sede do poder revolucionário —embora sob o comando do venezuelano Bolívar e apesar de ter sofrido consideravelmente menos em termos de derramamento de sangue do que a Venezuela durante a luta pela independência. 

Nas décadas seguintes à dissolução, os dois países enfrentaram situações internas caóticas, caracterizadas por conflitos civis internos e discórdias bilaterais fervilhantes sobre territórios terrestres e marítimos. 

A pujança do petróleo da Venezuela, a partir dos anos 1920, mudou tudo. Um país que subsistia basicamente da produção de café, cacau e gado —em uma região já cheia dessas indústrias— se tornou um dos primeiros países do mundo a desenvolver uma próspera indústria de petróleo.

No final dos anos 1940, a Venezuela era não apenas a economia mais rica da América Latina, como um dos cinco países mais ricos do mundo em uma base per capita.

Modernizando-se rapidamente em consequência disso, esse fator reverteu por algum tempo a antiga dinâmica de poder entre o antigo vice-reinado e sua antiga capitania-geral.

A Venezuela podia agora abordar seu vizinho mais populoso em termos muito mais igualitários, e entre os anos 1920 e início dos 1950 foram feitos acordos para demarcar fronteiras que eram disputadas entre os dois países.

Na segunda metade do século, esse desequilíbrio que favorecia a Venezuela se tornaria cada vez mais pronunciado.

Enquanto os dois países realizaram transições democráticas relativamente suaves, afastando-se do regime militar mais ou menos na mesma época, a Colômbia em 1957 e a Venezuela no ano seguinte, provocando um período de forte cooperação binacional entre as duas, o que seria uma verdadeira era de ouro para o desenvolvimento da Venezuela coincidiu com várias décadas difíceis para a Colômbia. 

Ambas enfrentaram poderosas rebeliões de guerrilhas marxistas nos anos seguintes ao restabelecimento da democracia, mas a Venezuela conseguiu pacificar o Movimento de Esquerda Revolucionária e seus sucessores rebeldes no final dos anos 1970, enquanto na Colômbia as insurreições das Farc, M-19 e ELN duraram muito mais e se mostraram significativamente mais perturbadoras para seu desenvolvimento nacional. 

O cultivo e a exportação de drogas, tão emblemática na Colômbia durante a era Escobar nos anos 1980 e início dos 1990, tampouco conseguiram criar raízes na Venezuela.

Isso se deveu em parte a fatores geográficos, pois a topografia relativamente mais fácil da Venezuela e a infraestrutura comparativamente melhor na época permitiram que o governo central de Caracas mantivesse maior controle de suas províncias que Bogotá. 

A economia também teve um papel, já que a substancial liquidez do petróleo na economia venezuelana tornava os salários do trabalho em geral significativamente mais altos que em seus vizinhos, resultando num efeito de "doença holandesa" que desestimulou o desenvolvimento da agricultura ilícita, assim como do café, da pecuária e de outros produtos.

Dessa maneira, enquanto os venezuelanos gozavam os prazeres efêmeros da "Venezuela Saudita", a Colômbia sofria as consequências do aumento da pobreza, da instabilidade e de insurgências rebeldes.

Mesmo assim, apesar dos problemas internos, ou talvez devido a eles, a Colômbia continuou sendo um país distante das vicissitudes da tumultuada região latino-americana.

Durante momentos em que os países circundantes foram varridos por destrutivas ondas regionais, com seus militares combatendo paramilitares e rebeldes, ela não foi afetada pela ressurgência dos golpes militares nos anos 1970.

Tendo sido considerada arriscada demais durante esse período para atrair muito investimento internacional, ela foi poupada do carrossel de moratórias internacionais da dívida e reestruturações pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) que assolaram a região nos anos 1980. 

Sem as impopulares reformas do Consenso de Washington para produzir uma onda de reestruturações, ela saltou a era de corrupção e excessos de gastos sob os movimentos populistas da "maré cor-de-rosa" que invadiu seus vizinhos posteriormente ou a ressaca resultante —nenhuma mais forte que a da Venezuela. 

Sem dúvida, o século 21 foi muito mais generoso com a filha "universitária" de Bolívar do que com sua irmã "belicosa", tanto em termos de liderança como de estabilidade e oportunidades econômicas.

Bogotá, empoleirada nas montanhas, mostrou-se constantemente fora da zona de borrifo em termos das duras mudanças políticas cíclicas da esquerda revolucionária para a direita revolucionária que marcaram o resto do continente. 

Os anos 1970 também viram um enorme influxo de imigrantes colombianos sem documentos para a Venezuela, abrangendo diaristas pela fronteira de fácil travessia, assim como refugiados econômicos e deslocados por conflitos que fugiram em grande número para o interior da Venezuela.

Durante décadas, algo semelhante a uma subclasse migrante colombiana persistiu na Venezuela —conhecidos como "venecos". 

Enquanto acusações de xenofobia, por um lado, e de negligência, por outro, às vezes complicaram a relação entre os dois países, o alto grau de semelhança cultural e linguística dessa população com os venezuelanos facilitou sua integração de modo considerável, e a reação nativista continuou relativamente branda, nunca se tornando um grande problema político para Caracas.

Mesmo quando as tensões ideológicas e políticas começaram a crescer consideravelmente sob Hugo Chávez e Álvaro Uribe nos anos 2000, quase provocando um aparente racha na fronteira armada em 2008, os laços econômicos e migratórios entre os vizinhos continuaram bastante fortes.

Enquanto a Venezuela continuou recebendo um fluxo constante de mão de obra não qualificada e barata do oeste, os efeitos perversos do estrangulamento do chavismo ao setor privado local e de frequentes expurgos políticos começaram a enviar os venezuelanos instruídos na outra direção. 

A companhia estatal de petróleo da Colômbia, por exemplo, herdou grande parte do melhor capital humano da PDVSA, quando a vida na Venezuela se tornou cada vez mais impossível para os profissionais de nível superior e a classe técnica.

Só nos últimos anos, depois do colapso dos preços do petróleo no final de 2014, provocando uma queda acentuada dos padrões de vida e a escassez de produtos básicos, juntamente com a maior radicalização política e repressão do governo Maduro, o fluxo direcional de mão de obra menos qualificada se inverteu, mas os números eclipsam qualquer coisa vista antes por um fator de 10 vezes ou mais —na casa dos milhões.

Hoje, poucos minutos no lado oeste da ponte internacional Simón Bolívar, em Cúcuta, bastam para que a lenta valsa estatal da geopolítica, e até o ritmo de tarantela da indignação das redes sociais, sejam totalmente afogados pela imensidão da crise humanitária que se desenrola em torno de você.

As narrativas limpas e arrumadas —guerra econômica x má administração, golpe x contragolpe— desaparecem, desmentidas por cada novo rosto que se vê. 

Os olhares nervosos e exaustos da Guarda Nacional Bolivariana de Maduro. Do outro lado do posto de controle, equipes da União Europeia e da ONU freneticamente tentando organizar o fluxo de doentes e feridos, ou de menores desacompanhados. Depois, há os famintos, desesperados, às vezes esperançosos rostos de venezuelanos que fogem de seu país. 

Há muito epicentro de um comércio bilateral próspero (e muitas vezes ilícito) entre a Venezuela e a Colômbia quando os tempos eram melhores, hoje as casas de câmbio, que antes tornaram a expressão "dólares de Cúcuta" em sinônimo de mercado negro, fecharam todas, vítimas da crise da moeda venezuelana hiperinflacionada e portanto inegociável.

Indústrias chaves locais que vão da construção à prostituição também foram arrasadas por uma inundação de mão de obra venezuelana refugiada, muito barata e com frequência mais qualificada.

Situado no ponto de mais fácil travessia do rio Táchira, que divide a Colômbia de sua vizinha perturbada a leste, foi aqui que os soldados de Simón Bolívar cruzaram pela primeira vez para a Colômbia para garantir a independência em 1813 —seus 800 soldados dominando rapidamente a pequena guarnição espanhola da cidade.

Hoje um número equivalente de venezuelanos cruza para Cúcuta a cada 25 minutos, em média, e são os próprios colombianos que estão sendo avassalados.

Mesmo com os piores efeitos desse êxodo maciço de venezuelanos, e enquanto o governo do presidente colombiano, Iván Duque, se coordena ativamente com a maioria dos aliados regionais para instigar a transição no governo do "homem doente da América Latina", fugindo da revolução de Maduro que desmorona, afetando a maioria dos países da região em graus variados, os próprios colombianos —para seu crédito— até agora se mostraram muito menos inclinados à reação nativista xenofóbica do que foi o caso na maioria dos outros países.

Saldando, talvez, uma dívida de um passado não muito distante, quando a Venezuela deu oportunidade a colombianos desesperados que fugiam da pobreza e da violência sectária. Países irmãos discutindo sobre uma gangorra, mas mais unidos pelo sangue e a história do que divididos pela política. 

Daniel Lansberg-Rodríguez é diretor para América Latina da consultoria de risco geopolítico e macroeconômico Greenmantle e professor da Northwestern University

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves 

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