Descrição de chapéu The New York Times

Ideologia transforma casal filipino em agente do Estado Islâmico

Caminho para a radicalização não era claro, dizem amigos; dupla se rendeu em meio à derrocada do califado

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The New York Times

Ela era católica e excelente em matemática, e obteve um MBA em uma das melhores universidades das Filipinas. Ele era descendente da família real de um sultanato muçulmano, e se formou em ciência da computação.

O casal, Ellen Barriga e Mohammad Reza Kiram, poderia servir como modelo para um casamento moderno entre pessoas de religiões diferentes. Em lugar disso, eles se tornaram um retrato de como a ideologia violenta transforma filipinos de alta escolaridade em agentes da morte trabalhando para o Estado Islâmico.

Em 2015, Barriga e Kiram viajaram à Síria para fazer parte da organização terrorista, e se tornaram recrutadores importantes de outras pessoas do sudeste asiático para a organização, de acordo com agentes dos serviços de inteligência das Filipinas e dos Estados Unidos.

Em janeiro, forças sírias apoiadas pelos Estados Unidos anunciaram que o casal tinha se rendido, como milhares de outros militantes estrangeiros apanhados entre o califado, que estava em colapso, e países natais que relutam em aceitá-los de volta.

Um ano depois de chegar à Síria, Kiram, um homem de cabelos encaracolados e malares salientes, apareceu em um vídeo do Estado Islâmico. Nele, Kiram, um malásio e um indonésio instavam estrangeiros a participar de uma jihad nas regiões muçulmanas das Filipinas, onde o Estado Islâmico vinha ganhando força.

"Cultores da cruz", ele ameaçou, "usaremos a linguagem das espadas e a linguagem das balas. Nossos irmãos no caminho de Alá logo se sublevarão em suas terras".

Kiram então sacou de um punhal e decapitou um refém que estava ajoelhado diante dele.

No ano passado, o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos aplicou sanções a Kiram, 29, por "atos brutais como parte de uma campanha de propaganda cujo objetivo era atrair radicais para recrutamento por organizações terroristas e militantes do sudeste asiático".

Barriga, que se converteu ao islamismo depois de se formar em contabilidade, foi acusada pelas autoridades das Filipinas de canalizar fundos do Estado Islâmico para militantes locais e de ajudar em um atentado a bomba frustrado na cidade de Davao, no sul das Filipinas.

Seu nome cristão ajudou Barriga, 38, a abrir contas de banco e evitar suspeitas, ainda que ela já estivesse gravitando para as fímbrias mais radicais do islamismo, disseram os agentes de inteligência.

Em sua casa, em Davao, Edgar Barriga, o pai de Ellen Barriga, disse que estava aliviado por receber notícias sobre sua filha, ainda que o caminho escolhido por ela seja muito doloroso para ele.

"Estou feliz por ela estar com o Estado Islâmico na Síria", ele disse, "porque desse jeito pelo menos sei que a minha Ellen está viva".

Mesmo para seus amigos e parentes mais próximos, o caminho do casal para a radicalização não parece claro. Não houve traumas que definissem essa escolha, ou rompimentos com a sociedade; apenas pequenos sinais que, em retrospecto, indicavam problemas: tempo demais passado na internet, talvez, ou um destemor que pode ter amadurecido em forma de de fanatismo.

"Sinto pesar sempre que penso nele, porque era um aluno tão bom", disse o xeque Mahir Gustaham, que ensinou jurisprudência islâmica a Kiram e o considerava como seu aluno favorito. "Para mim, é uma lição aprendida: observar de perto e atentamente os bons alunos, os alunos quietos, porque eles podem mudar."

Veículos destruídos e construções danificadas em Baghouz, na Síria, próximo à fronteira com o Iraque, um dia depois de o califado do Estado Islâmico ter sido declarado derrotado por forças aliadas dos Estados Unidos - AFP

Barriga cresceu em um bairro asseado de Davao, e frequentava a igreja de São Miguel, que celebra o arcanjo que defende a fé cristã contra forças demoníacas. O pai dela trabalhava em uma empresa de cacau. Sua mãe fazia trabalhos voluntários na igreja.

Na Escola Nacional Francisco Bustamante, onde ela fez o segundo grau, Ellen Barriga era aluna excelente, foi líder estudantil e organizou festas. Ela conseguiu uma bolsa de estudos para a prestigiosa universidade Ateneo de Davao, e trabalhou como gerente de contabilidade depois de se formar.

Ela tinha um namorado muçulmano e se converteu, começando a usar um lenço nos cabelos quando saía em público. Barriga explicou aos pais que, se a Virgem Maria usava um véu, por que ela não deveria fazer o mesmo?

A mãe de Barriga, Fely, consultou o padre de sua paróquia. "Ele me disse que eu deveria permitir que ela escolhesse o Islã", recorda Fely. "E que ela voltaria para a Igreja quando estivesse pronta."

Depois que Barriga se casou com Kiram, os pais dela só viram seu genro uma vez, por apenas 10 minutos, em um corredor de hospital depois que Ellen Barriga teve uma filha.

Sempre que seus pais a visitavam, havia desculpas para explicar a ausência do genro. Kiram estava viajando para identificar novas fontes de frutos do mar, Barriga dizia.

"Ele estava sempre ocupado, com peixes secos e pepinos do mar", disse Fely Barriga. "E eu preferia não fazer perguntas demais."

Em 2015, o casal anunciou que se mudaria para Zamboanga, uma cidade em um promontório no sul da ilha de Mindanao. Foi a última vez que os pais de Ellen Barriga viram a filha.

A família Kiram é parte da realeza em Mindanao; seus integrantes descendem da dinastia que reinava sobre um sultanato muçulmano que governava ilhas que se estendiam até a Malásia. Quando os colonialistas espanhóis chegaram, no século 16, a maioria dos filipinos se converteu ao catolicismo, mas a parte sul das ilhas reteve suas raízes muçulmanas.

O pai de Kiram era empresário. Sua mãe, como muitas mulheres de alta escolaridade nas Filipinas, trabalhava fora do país, como enfermeira na Arábia Saudita. Por conta da renda que a mãe obtinha no exterior, a vida de Kiram era confortável, mas sempre lhe faltou disciplina familiar, dizem pessoas de sua família.

Kiram estudou na Escola da Tolerância Filipino-Turca, uma instituição privada que atendia alunos cristãos e muçulmanos em Zamboanga, uma cidade de fronteira com um longo histórico de atentados a bomba e cercos militares.

Para seus primos mais jovens, Kiram, que em seguida estudou computação em um instituto técnico, servia como exemplo, sempre cercado por uma multidão de amigos. Mais que tudo, ele e distinguia pela forte defesa da moralidade, disse um de seus primos, que não permitiu que seu nome fosse citado por medo de ser estigmatizado em função da infâmia do parente.

O primo só descobriu sobre a radicalização de Kiram quando viu notícias na TV sobre o vídeo do Estado Islâmico. "Foi o maior choque de minha vida", ele disse.

A polícia das Filipinas agora afirma que Kiram, conhecido pelo pseudônimo Abdul Rahman, esteve envolvido em um atentado contra um terminal de ônibus em Zamboanga em 2012.

Naquele ano, Kiram ajudou a produzir um vídeo militante que foi o primeiro a usar como pano de fundo, nas Filipinas, a bandeira negra mais tarde associada ao Estado Islâmico, de acordo com Rommel Banlaoi, autor de um livro sobre o terrorismo recente nas Filipinas que será lançado em breve.

O vídeo do Estado Islâmico gravado na Síria em 2016, com Kiram ecoando os chamados de um pregador, foi tão bem produzido que as forças armadas das Filipinas o usam em um curso interno sobre propaganda efetiva.

Enquanto isso, Barriga estava fazendo alianças com outros "Balik Islam", o nome pelo qual os cristãos convertidos ao islamismo são conhecidos nas Filipinas.

Em 2012, Kiram e Barriga foram detidos pelas autoridades por suposto envolvimento em um atentado a bomba frustrado, no qual um homem indonésio e sua mulher "Balik Islam" tentaram atacar uma feira noturna em Davao. O indonésio foi morto a tiros pela polícia. A mulher dele, Kiram e Barriga foram libertados por falta de provas.

Não está claro o que acontecerá agora a Kiram e Barriga, que ao que se sabe estão em um campo de prisioneiros lotado de militantes estrangeiros, na Síria. O Departamento de Assuntos Internacionais das Filipinas se recusou a comentar sobre o caso deles.

Em Zamboanga, Gustaham e outros muçulmanos moderados que conheciam Kiram estão nervosos. Religiosos muçulmanos que promovem eventos ecumênicos receberam ameaças de morte.

"Ele pode contatar todos os professores islâmicos e dizer que não sou um verdadeiro muçulmano", disse Gustaham sobre o homem que um dia foi seu aluno favorito. "É assustador."

Membros das Forças Democráticas da Síria tiram uma 'selfie' em Baghouz, na Síria, um dia após a derrocada do Estado Islâmico pelas forças aliadas dos EUA - AFP

Tradução de Paulo Migliacci

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