Mortes em trotes põem em xeque fraternidades nos EUA

Famílias enfrentam dificuldades para processar grupos; universidades são lenientes

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Nova York

Em 23 de fevereiro, o estudante Marlon Jackson, 23, morreu em decorrência dos ferimentos provocados por uma colisão com outro carro em uma estrada em Smyrna, Delaware. 

Seria somente mais uma morte de um jovem a lamentar se não fosse a provável causa do acidente: segundo a família, Marlon, que dirigia o veículo, estava sem dormir havia um dia inteiro. 

E a razão para a privação de sono seria um trote da fraternidade Kappa Alpha Psi, que o enviava para “missões” em horários aleatórios —no momento da batida, ele estaria cumprindo uma delas.

Não é a primeira vez que a fraternidade se vê envolvida em um caso de trote com final trágico. Em 1994, um membro do grupo no Missouri morreu após ser espancado em um ritual de iniciação —nos EUA, as maiores fraternidades (como Sigma Alpha Epsilon, Kappa Sigma e Sigma Chi) têm uma central nacional e ramificações (ou seções) locais.

Tráfego em rodovia é interrompido durante o atendimento ao acidente que vitimou Marlon Jackson, 23, que bateu o carro em que estava com três amigos após passar mais de 24 horas sem dormir -segundo a família, ele estaria cumprindo uma missão que fazia parte do trote da fraternidade Kappa Alpha Psi, em Smyrna, no estado de Delaware
Tráfego em rodovia é interrompido durante atendimento ao acidente que vitimou Marlon Jackson, 23, que bateu o carro em que estava com três amigos após passar mais de 24 horas sem dormir -segundo a família, ele estaria cumprindo uma missão que fazia parte do trote da fraternidade Kappa Alpha Psi, em Smyrna, no estado de Delaware - William Bretzger/The News JournalFI

Não são poucas as mortes ligadas, de alguma forma, a grupos com letras gregas no nome: 248, nas contas de Hank Nuwer, professor da escola de jornalismo do Franklin College e autor do livro “Hazing: Destroying Young Lives” (Trote: destruindo vidas jovens).

Nuwer, membro da sociedade de honra Phi Kappa Phi, criou o banco de dados motivado por uma experiência que teve quando era estudante de jornalismo, em 1975, na Universidade Nevada, em Reno.

Uma fraternidade local, The Sundowners (em referência a drinques tomados no pôr do sol), fez um ritual de iniciação em uma reserva indígena. Saldo: um morto e outro candidato com dano cerebral causado pela quantidade de álcool ingerida. 

“Hoje, oito de dez mortes em trotes são ligadas ao álcool. Antes de 1940, não houve nenhuma”, diz Nuwer.
Mesmo quando não há mortes, os rituais e trotes, em tese proibidos por leis locais, da universidade ou da própria fraternidade, podem ser considerados de gosto questionável. 

Em 15 de fevereiro, nove integrantes da Delta Kappa Epsilon foram presos por fazer “brincadeiras” durante o juramento de calouros da Universidade Estadual da Louisiana que queriam integrar o grupo.

Exemplo: mandar os candidatos deitar com o rosto virado para o chão coberto de vidro quebrado enquanto os veteranos urinavam neles. Também houve relatos de agressões com canos, socos, chutes e tapas. Um dos veteranos jogou gasolina num novato, o líquido escorreu para os olhos e o jovem teve que sair correndo para lavá-los e evitar danos.

Equipes de socorro trabalho no acidente que matou Marlon Jackson, 23, no estado Delaware
Equipes de socorro trabalho no acidente que matou Marlon Jackson, 23, no estado Delaware - William Bretzger/The News Journal

Os incidentes não parecem ser suficientes para afetar a popularidade dos grupos. Em algumas universidades, mais de 90% dos alunos homens seriam filiados a uma organização do tipo —caso do Welch College, em Gallatin, Tennessee.

Em cidades pequenas como Gallatin —cerca de 37 mil habitantes—, fazer parte de um grupo desses pode ser a única chance de o novato ter uma vida social. É algo bem parecido com o que acontecia havia décadas, diz Andrew Moisey, fotógrafo e professor da Universidade Cornell.

“Por muito tempo, as fraternidades eram a única forma de socialização de estudantes que vinham de cidades distantes. Aí chega um grupo de caras que diz que vai protegê-los. Parece bom.”

Durante sete anos, Moisey fotografou uma fraternidade na Universidade Berkeley, na Califórnia, onde seu irmão estudava. Lá ele encontrou um manual com rituais de iniciação

O fotógrafo, então, decidiu publicar um livro, “The American Fraternity: An Illustrated Ritual Manual” (A fraternidade americana: um manual de ritual ilustrado), em que os ritos são reproduzidos. 

“Fotografar uma fraternidade é como ser fotógrafo da National Geographic: os leões passam a maior parte do tempo dormindo ou sem fazer nada, aí você tem de esperar eles acordarem e fazerem algo incrível”, brinca. 

Ele registrou estudantes jogando videogame, pingue-pongue, lavando louça e em outras atividades banais. “Mas, quando é hora de se divertir, eles podem se comportar mal.”

Aí entram as cenas descritas acima e outras parecidas com as retratadas em filmes americanos, sempre com bebida e sexo —ou episódios de estupro, que não são raros.

Para alunos novos entrar numa fraternidade também pode ser puro networking.

Ex-presidentes famosos —entre eles, o atual, Donald Trump, mas também Bill Clinton e George W. Bush— pertenceram a uma delas. Vários CEOs também, como os magnatas Warren Buffett e Michael Bloomberg.

Mas nem todos podem ser admitidos nos grupos. 

“Historicamente, as [fraternidades] mais poderosas e antigas eram brancas, em parte porque a maioria foi criada no século 19, quando basicamente brancos tinham acesso à educação superior”, diz John Hechinger, autor do livro “True Gentlemen: The Broken Pledge of America’s Fraternities” (Verdadeiros cavalheiros: o juramento quebrado das fraternidades americanas).

Marlon Jackson, 23, que bateu com o carro em que estava com três amigos após ficar 24 horas sem dormir, segundo a família, devido a trote da fraternidade Kappa Alpha Psi
Marlon Jackson, 23, que bateu com o carro em que estava com três amigos após ficar 24 horas sem dormir, segundo a família, devido a trote da fraternidade Kappa Alpha Psi - Reprodução

“Depois, elas excluíram minorias raciais, judeus e mulheres. Por isso, foram criadas sororidades e fraternidades para negros, latinos e asiáticos, por exemplo.”

Outra tradição passada adiante foi a relação conturbada entre universidades e fraternidades, na qual há um conflito de interesses que dificulta que os grupos sejam punidos por muito tempo quando ocorrem mortes nos trotes.

Em geral, as universidades precisam do alojamento oferecido pelas fraternidades. Elas também recebem dinheiro de ex-alunos bem-sucedidos. 

Logo, quando calouros morrem, o mais comum é responsabilizar os estudantes envolvidos no trote, e não a organização inteira. Quando alguma punição ao grupo ocorre, como o fechamento da seção, costuma ser temporária.

“As universidades não querem prejudicar essa fonte de renda, então encaram o caso como uma maçã podre. A maioria não quer irritar os ex-alunos”, afirma Nicholas Syrett, professor da Universidade do Kansas.

Quando os pais do aluno morto tentam processar a fraternidade, também encontram dificuldade. “Elas dizem que não são responsáveis pelo que aconteceu, que os alunos violaram as regras. Outros alunos não testemunham, e há o discurso de que ninguém obrigou o aluno a beber.”

Syrett é cético em relação a mudanças nesse cenário. “A organização nacional quer que o trote termine, mas os alunos novos querem continuar fazendo. Se você punir uma fraternidade, em quatro anos os membros serão diferentes. Se você convencer todos agora a abandonar o trote, ainda assim será difícil convencer os novos alunos. É um trabalho sem fim.”

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