Na Nova Zelândia, difundir vídeo de massacre em mesquitas é crime

Atirador transmitiu ataque ao vivo por redes sociais, que demoraram horas a tirar os vídeos do ar

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Christchurch (Nova Zelândia)

Um supremacista branco agindo sozinho é o autor suspeito da matança em duas mesquitas de Christchurch. Mas pelas leis neozelandesas, muitas outras pessoas podem ser criminalmente acusadas por difundir ou talvez até por possuir todo ou parte do vídeo de 17 minutos transmitido ao vivo no Facebook Live pelo assassino enquanto metodicamente fuzilava as vítimas.

Até a quinta-feira (21), pelo menos duas pessoas já tinham sido acusadas criminalmente por compartilhar o vídeo nas redes sociais, infringindo uma lei que proíbe a disseminação ou posse de materiais que mostrem violência extrema e terrorismo.

Outras pessoas podem ser acusadas de divulgação do ataque terrorista, conforme uma lei de direitos humanos que proíbe a incitação à desarmonia racial.

 
 

A liberdade de expressão é um direito previsto por lei na Nova Zelândia, mas os parâmetros são mais limitados que as garantias proporcionadas nos EUA pela Primeira Emenda à Constituição americana.

O Departamento de Assuntos Internos neozelandês possui um censor chefe —um funcionário autorizado a determinar quais materiais são proibidos.

As restrições significam que os neozelandeses podem enfrentar consequências legais por assistirem intencionalmente ao vídeo do assassino de Christchurch, que pode ter sido visto milhões de vezes pelo mundo afora.

O Facebook e outras plataformas sociais também podem enfrentar problemas legais em função do vídeo, e não apenas na Nova Zelândia.

A primeira-ministra Jacinta Ardern prometeu investigar o papel exercido pelas redes sociais no ataque e tomar medidas, possivelmente em conjunto com outros países, contra os sites que difundiram o vídeo.

“Não podemos ficar parados e simplesmente aceitar que essas plataformas existem e que o que é dito nelas não é responsabilidade do lugar onde são publicadas”, ela disse ao Parlamento na terça-feira (19).

“As plataformas são responsáveis pelo conteúdo, não são apenas o meio pelo qual a mensagem é transmitida.”

Ardern não especificou quais medidas vai propor. Mas está claro que aplicativos de mídia social incentivaram a atividade online de outras pessoas que difundiram a mensagem do assassino.

Philip Neville Arps compareceu a um tribunal em Christchurch na quarta-feira (20) devido a duas acusações ligadas à postagem do vídeo do assassino.

Seu pedido de liberdade sob fiança foi negado, e agora ele enfrenta quase um mês em detenção até sua próxima audiência no tribunal.

Um adolescente de Christchurch cujo nome não foi divulgado teve liberdade sob fiança negada na segunda-feira (18).

Ele foi acusado de ter postado uma foto da mesquita Al Noor, uma das duas atacadas, uma semana antes do massacre, com a legenda “alvo marcado”. Ele também foi acusado de repostar o vídeo.

Se condenados, eles podem ser sentenciados a até 14 anos de prisão cada um.

Uma mulher em Masterton, na Ilha Norte da Nova Zelândia, foi detida por comentários que fez em sua página no Facebook após os ataques.

A polícia disse ao jornal New Zealand Herald que ainda não decidiu se vai denunciá-la por violação da Lei de Direitos Humanos.

Se for condenada, ela pode enfrentar multa de NZ$ 7 mil ( cerca de R$ 18 mil).

Os casos destacam o desafio enfrentado pelas redes sociais para frustrar e deletar atividades reprováveis em suas plataformas.

Analistas disseram que frequentemente se supõe, sem razão, que materiais supremacistas brancos fiquem ocultos em partes da internet de difícil alcance.

“Muitos conteúdos de extrema direita –me arrisco até a dizer que a maioria— são facilmente acessíveis em espaços online abertos, onde podem ser consumidos pelo maior número possível de pessoas”, disse Maura Conway, professora sênior de segurança internacional na Dublin City University, na Irlanda.

Ela explicou que esses espaços incluem plataformas de mídia social e as seções de comentários dos sites de jornais, além de fóruns supremacistas brancos.

O Facebook, a plataforma usada pelo assassino de Christchurch para difundir o ataque em um de seus produtos mais conhecidos, o Facebook Live, vem sendo pressionado a explicar seu papel na proliferação do vídeo.

Na noite de quarta-feira (20), a rede social respondeu a algumas das preocupações expressas com o alastramento do vídeo em um blog post.

Menos de 200 pessoas assistiram ao massacre ao vivo, enquanto ocorria, disse Guy Rosen, vice-presidente de gestão de produtos do Facebook.

E nenhum usuário denunciou o post aos moderadores de conteúdo do Facebook durante o streaming ao vivo, um sinal importante para a empresa flagrar conteúdos lesivos e tirá-los do ar antes que se disseminem viralmente pelo site.

O Facebook disse que removeu o vídeo do assassino minutos depois de a polícia neozelandesa ter contatado a empresa, depois do massacre.

O vídeo original foi visto no Facebook cerca de 4.000 vezes antes de ser tirado do ar.

Mas pelo menos uma pessoa conseguiu gravar o streaming ao vivo do vídeo antes de o Facebook tirá-lo de circulação.

Alguém postou o vídeo no 8chan, um site de fóruns sociais que abriga conteúdos ofensivos proibidos em muitas plataformas mainstream como Facebook, YouTube e Instagram.

A partir do 8chan, o vídeo se alastrou rapidamente e milhões de pessoas começaram a tentar publicá-lo no Facebook novamente, fortalecendo ainda mais o efeito viral.

O Facebook disse que nas 24 horas seguintes ao massacre a empresa bloqueou mais de 1,2 milhão de tentativas de upload do vídeo e tirou do ar mais de 300 mil cópias que tinham sido publicadas.

“As pessoas compartilharam este vídeo por uma série de razões”, comentou Rosen, o vice-presidente do Facebook.

“Algumas pretendiam promover os atos do assassino, outras estavam curiosas e ainda outras pretendiam denunciar a violência. A distribuição foi impelida ainda mais pelo fato de a existência do vídeo ser amplamente divulgada. Isso pode ter levado as pessoas a procurá-lo e então compartilhá-lo com mais amigos.”

Ben Elley, doutorando da Universidade de Canterbury, em Christchurch, que estuda o radicalismo online, disse que as empresas de mídia social mainstream conseguiram, de modo geral, suprimir conteúdos de organizações como o Estado Islâmico em suas plataformas, mas que entidades de extrema direita não foram sujeitas ao mesmo tratamento.

O escritório do censor chefe da Nova Zelândia, David Shanks, reconheceu que muitas pessoas podem ter assistido ao vídeo do massacre nas mesquitas de Christchurch de modo não intencional, especialmente durante e imediatamente após o ataque. Apenas na segunda-feira, três dias após o ataque, é que Shanks classificaria o vídeo oficialmente como objetável.

“Está claro que este vídeo foi levado a muitos neozelandeses inocentes por aplicativos diversos”, ele disse. “Recebemos relatos de que ele teria tocado ‘automaticamente’ para algumas pessoas que sequer sabiam do que se tratava.”

O censor disse que as pessoas que disseminam o vídeo na Nova Zelândia podem ser presas. Ele avisou todos os neozelandeses que mesmo a posse inocente do vídeo é crime.

“Se você possui uma cópia ou um link para o vídeo, deve apagá-lo”, ele disse. “Se você o ver, deve denunciá-lo à polícia. A posse ou distribuição do vídeo é ilegal e apenas ajuda a promover uma agenda criminosa.”

Tradução de Clara Allain

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