O primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, prometeu uma nova abordagem da política, baseada em abertura, decência e liberalismo.
Agora ele é parte de um escândalo que envolve acusações de negócios escusos e táticas prepotentes, tudo para apoiar uma empresa canadense acusada de pagar propina ao governo líbio na época do ditador Muammar Gadhafi.
Os jornais canadenses estão cheios de indignação, e os partidos de oposição pedem a renúncia de Trudeau. As eleições serão só daqui a sete meses, mas alguns membros do partido governante, o do próprio Trudeau, temem que o escândalo tenha dado aos partidos de oposição um rico material de campanha contra seu líder, que prometeu "caminhos ensolarados" na política.
"Isto é um enorme golpe para a marca pessoal de Justin Trudeau e sua promessa de fazer política de um modo diferente", disse Shachi Kurl, diretora-executiva da firma de pesquisas sem fins lucrativos Angus Reid Institute, sediada em Vancouver (oeste do país).
Ela acrescentou: "Esse brilho não foi danificado ou riscado. Foi completamente apagado".
O caso gira em torno de acusações de que a empresa multinacional de engenharia SNC-Lavalin, baseada em Quebec, pagou 47,7 milhões de dólares canadenses (R$ 135,5 milhões) em propinas a autoridades da Líbia para ganhar contratos lá e fraudou o governo líbio e seus órgãos em 129,8 milhões de dólares canadenses.
O primeiro-ministro e seus assessores foram acusados de pressionar a ministra da Justiça na época, Jody Wilson-Raybould, para suspender o inquérito criminal contra a companhia porque uma condenação poderia custar milhares de empregos no Canadá e diminuir as chances políticas de seu Partido Liberal.
Ela não arquivou o inquérito, e em janeiro foi transferida para um cargo inferior no gabinete, o que na opinião de muitos foi uma punição. Depois, deixou o cargo.
O escândalo vem se avolumando lentamente durante semanas, e já provocou a renúncia do principal assessor político de Trudeau e a abertura de uma investigação na Comissão de Ética do Parlamento sobre potenciais conflitos de interesses.
Na quarta-feira (27), Wilson-Raybould compareceu diante da Comissão de Justiça da Câmara dos Deputados, interrompendo semanas de silêncio.
Na televisão ao vivo, ela calmamente descreveu as exigências e "ameaças veladas" que recebeu durante quatro meses do gabinete de Trudeau para aceitar um acordo no caso criminal. "Houve um esforço concertado e sustentado para influenciar politicamente meu papel como secretária de Justiça", disse Wilson-Raybould, que, como primeira pessoa indígena a ocupar esse prestigioso cargo e a única indígena no gabinete de Trudeau, era um símbolo poderoso do compromisso de seu governo com os direitos das mulheres e dos indígenas.
Trudeau negou que ele ou qualquer pessoa tenha agido de maneira inadequada no trato com Wilson-Raybould. Ele salientou que tem tentado proteger os empregos canadenses, como "os canadenses esperam que seu governo faça", enquanto respeita as leis do país e a independência do Judiciário.
Mas muito na política são aparências, e a visão parece terrível --um autodeclarado feminista que prometeu uma nova maneira de governar, aberta e transparente, enviando assessores descritos como capangas para pressionar uma mulher indígena na tentativa de dobrá-la.
A nomeação de Wilson-Raybould para ministra da Justiça pareceu para muitos uma prova de que Trudeau falava sério sobre corrigir os erros do país contra sua população indígena e tratá-la como parceira respeitada, como ele prometeu durante a campanha.
Agora esse legado é questionado por causa da transferência de Wilson-Raybould para o cargo de ministra de assuntos dos veteranos, que ela deixou na semana passada.
"Reconciliação também significa respeitar as vozes dos indígenas", disse Sheila North, uma ex-líder indígena em Manitoba, norte do Canadá. "Toda essa exibição mostrou, afinal, que dinheiro e poder são mais importantes que construir a reconciliação."
Em seu depoimento, Wilson-Raybould, que foi líder de alto nível de grupos indígenas na costa oeste do Canadá, lembrou ao país que seu governo tem uma história de ignorar a lei quando se trata de povos indígenas, e disse que testemunhou os "impactos negativos" disso em primeira mão.
"Eu venho de uma longa linhagem de matriarcas, e sou uma pessoa que fala a verdade, de acordo com as leis e tradições de nossa Grande Casa", disse ela, referindo-se ao centro de governança e atividades culturais da nação Kwakwaka’wakw. "Eu sou assim e sempre serei."
Muitos adversários de Trudeau estão dizendo que toda a controvérsia prova que Trudeau, que nomeou o primeiro gabinete do país com equilíbrio de gêneros, é um "feminista falso" que usa as mulheres, em vez de apoiá-las.
"Por que todas as mulheres desse grupo político, e seus supostos aliados feministas, não estão pedindo a renúncia do primeiro-ministro?", disse Michelle Rempel, deputada conservadora no Parlamento.
O líder da oposição conservadora, Andrew Scheer, pediu que a Polícia Montada do Canadá abra uma investigação por obstrução da Justiça.
Em seu depoimento, Wilson-Raybould descreveu a pressão que recebeu como "inadequada", mas disse —duas vezes— que não foi ilegal. A pressão, segundo ela, veio na forma de dez reuniões, dez conversas e uma série de emails sobre o caso criminal com autoridades graduadas.
Talvez a mais perturbadora das reuniões que ela descreveu foi uma com o próprio Trudeau, que lhe pediu para "encontrar uma solução aqui para a SNC", declarando que "haveria muitas perdas de empregos e a SNC se mudará de Montreal", disse ela.
Uma eleição provincial se aproximava, lembrou o primeiro-ministro durante a reunião, segundo Wilson-Raybould, e Trudeau pessoalmente tinha sido eleito por aquela área.
Mas o que muitos peritos judiciais acharam mais problemático no depoimento de Wilson-Raybould foi a sugestão de que o primeiro-ministro e seus principais assessores citaram preocupações políticas.
Errol Mendes, professor de direito na Universidade de Ottawa e que estuda o papel do secretário de Justiça, disse que, embora fosse legítimo para o primeiro-ministro e outros citarem a perda de empregos, quando eles levantaram questões políticas "descambaram absolutamente para uma pressão inadequada".
Apesar de o país parecer surpreso pelo súbito escurecimento da imagem do primeiro-ministro, a história não terminou.
O ex-secretário principal de Trudeau, Gerald Butts, que se demitiu após esse escândalo, pediu para falar publicamente diante da Comissão de Justiça. E o país espera para ver se o próprio Trudeau, assim como outros citados por Wilson-Raybould, farão um relato completo.
"As pessoas que preveem a demissão de Justin Trudeau ou dos liberais não fazem apostas seguras", disse Emmett Macfarlane, professor de ciência política na Universidade de Waterloo. Muito depende do que acontecerá nos próximos meses e de se o gabinete do primeiro-ministro será capaz de evitar um inquérito público total sobre o escândalo.
"Se a eleição fosse no mês que vem, provavelmente seria devastador e modificaria diretamente a campanha", disse Macfarlane. "É difícil dizer se o caso estará na mente dos canadenses em agosto ou setembro."
Enquanto isso, Trudeau tem sete meses para recuperar o que puder de sua reputação e esperar que o escândalo se dilua na mente dos eleitores quando eles voltarem às urnas.
"Ele tem de parar com qualquer fingimento e verniz de que é o cara dos 'caminhos ensolarados' ou o Sr. Limpeza", disse Kurl, a diretora da firma de pesquisas. "Agora ele terá de competir na política à moda antiga", acrescentou ela.
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