Descrição de chapéu The New York Times

Trudeau, que prometeu nova política no Canadá, se envolve em escândalo

Imagem de premiê se desgasta após acusações de que pressionou ministra em caso contra empresa

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Toronto | New York Times News Service

O primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, prometeu uma nova abordagem da política, baseada em abertura, decência e liberalismo. 

Agora ele é parte de um escândalo que envolve acusações de negócios escusos e táticas prepotentes, tudo para apoiar uma empresa canadense acusada de pagar propina ao governo líbio na época do ditador Muammar Gadhafi.

O primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, em evento no fim de fevereiro
O primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, em evento no fim de fevereiro - Christinne Muschi-28.fev.19/Reuters

Os jornais canadenses estão cheios de indignação, e os partidos de oposição pedem a renúncia de Trudeau. As eleições serão só daqui a sete meses, mas alguns membros do partido governante, o do próprio Trudeau, temem que o escândalo tenha dado aos partidos de oposição um rico material de campanha contra seu líder, que prometeu "caminhos ensolarados" na política. 

"Isto é um enorme golpe para a marca pessoal de Justin Trudeau e sua promessa de fazer política de um modo diferente", disse Shachi Kurl, diretora-executiva da firma de pesquisas sem fins lucrativos Angus Reid Institute, sediada em Vancouver (oeste do país).

Ela acrescentou: "Esse brilho não foi danificado ou riscado. Foi completamente apagado".

O caso gira em torno de acusações de que a empresa multinacional de engenharia SNC-Lavalin, baseada em Quebec, pagou 47,7 milhões de dólares canadenses (R$ 135,5 milhões) em propinas a autoridades da Líbia para ganhar contratos lá e fraudou o governo líbio e seus órgãos em 129,8 milhões de dólares canadenses.

O primeiro-ministro e seus assessores foram acusados de pressionar a ministra da Justiça na época, Jody Wilson-Raybould, para suspender o inquérito criminal contra a companhia porque uma condenação poderia custar milhares de empregos no Canadá e diminuir as chances políticas de seu Partido Liberal.

Ela não arquivou o inquérito, e em janeiro foi transferida para um cargo inferior no gabinete, o que na opinião de muitos foi uma punição. Depois, deixou o cargo.

O escândalo vem se avolumando lentamente durante semanas, e já provocou a renúncia do principal assessor político de Trudeau e a abertura de uma investigação na Comissão de Ética do Parlamento sobre potenciais conflitos de interesses.

Na quarta-feira (27), Wilson-Raybould compareceu diante da Comissão de Justiça da Câmara dos Deputados, interrompendo semanas de silêncio. 

Na televisão ao vivo, ela calmamente descreveu as exigências e "ameaças veladas" que recebeu durante quatro meses do gabinete de Trudeau para aceitar um acordo no caso criminal. "Houve um esforço concertado e sustentado para influenciar politicamente meu papel como secretária de Justiça", disse Wilson-Raybould, que, como primeira pessoa indígena a ocupar esse prestigioso cargo e a única  indígena no gabinete de Trudeau, era um símbolo poderoso do compromisso de seu governo com os direitos das mulheres e dos indígenas.

A ex-ministra da Justiça Jody Wilson-Raybould, que deixou o cargo
A ex-ministra da Justiça Jody Wilson-Raybould, que deixou o cargo - Chris Wattie-27.fev.19/Reuters

Trudeau negou que ele ou qualquer pessoa tenha agido de maneira inadequada no trato com Wilson-Raybould. Ele salientou que tem tentado proteger os empregos canadenses, como "os canadenses esperam que seu governo faça", enquanto respeita as leis do país e a independência do Judiciário.

Mas muito na política são aparências, e a visão parece terrível --um autodeclarado feminista que prometeu uma nova maneira de governar, aberta e transparente, enviando assessores descritos como capangas para pressionar uma mulher indígena na tentativa de dobrá-la.

A nomeação de Wilson-Raybould para ministra da Justiça pareceu para muitos uma prova de que Trudeau falava sério sobre corrigir os erros do país contra sua população indígena e tratá-la como parceira respeitada, como ele prometeu durante a campanha. 

Agora esse legado é questionado por causa da transferência de Wilson-Raybould para o cargo de ministra de assuntos dos veteranos, que ela deixou na semana passada. 

"Reconciliação também significa respeitar as vozes dos indígenas", disse Sheila North, uma ex-líder indígena em Manitoba, norte do Canadá. "Toda essa exibição mostrou, afinal, que dinheiro e poder são mais importantes que construir a reconciliação."

Em seu depoimento, Wilson-Raybould, que foi líder de alto nível de grupos indígenas na costa oeste do Canadá, lembrou ao país que seu governo tem uma história de ignorar a lei quando se trata de povos indígenas, e disse que testemunhou os "impactos negativos" disso em primeira mão.

"Eu venho de uma longa linhagem de matriarcas, e sou uma pessoa que fala a verdade, de acordo com as leis e tradições de nossa Grande Casa", disse ela, referindo-se ao centro de governança e atividades culturais da nação Kwakwaka’wakw. "Eu sou assim e sempre serei."

Muitos adversários de Trudeau estão dizendo que toda a controvérsia prova que Trudeau, que nomeou o primeiro gabinete do país com equilíbrio de gêneros, é um "feminista falso" que usa as mulheres, em vez de apoiá-las. 

"Por que todas as mulheres desse grupo político, e seus supostos aliados feministas, não estão pedindo a renúncia do primeiro-ministro?", disse Michelle Rempel, deputada conservadora no Parlamento.

O líder da oposição conservadora, Andrew Scheer, pediu que a Polícia Montada do Canadá abra uma investigação por obstrução da Justiça. 

Em seu depoimento, Wilson-Raybould descreveu a pressão que recebeu como "inadequada", mas disse —duas vezes— que não foi ilegal.  A pressão, segundo ela, veio na forma de dez reuniões, dez conversas e uma série de emails sobre o caso criminal com autoridades graduadas.

Talvez a mais perturbadora das reuniões que ela descreveu foi uma com o próprio Trudeau, que lhe pediu para "encontrar uma solução aqui para a SNC", declarando que "haveria muitas perdas de empregos e a SNC se mudará de Montreal", disse ela. 

Uma eleição provincial se aproximava, lembrou o primeiro-ministro durante a reunião, segundo Wilson-Raybould, e Trudeau pessoalmente tinha sido eleito por aquela área.

Mas o que muitos peritos judiciais acharam mais problemático no depoimento de Wilson-Raybould foi a sugestão de que o primeiro-ministro e seus principais assessores citaram preocupações políticas. 

Errol Mendes, professor de direito na Universidade de Ottawa e que estuda o papel do secretário de Justiça, disse que, embora fosse legítimo para o primeiro-ministro e outros citarem a perda de empregos, quando eles levantaram questões políticas "descambaram absolutamente para uma pressão inadequada".

Apesar de o país parecer surpreso pelo súbito escurecimento da imagem do primeiro-ministro, a história não terminou.

O ex-secretário principal de Trudeau, Gerald Butts, que se demitiu após esse escândalo, pediu para falar publicamente diante da Comissão de Justiça. E o país espera para ver se o próprio Trudeau, assim como outros citados por Wilson-Raybould, farão um relato completo.

"As pessoas que preveem a demissão de Justin Trudeau ou dos liberais não fazem apostas seguras", disse Emmett Macfarlane, professor de ciência política na Universidade de Waterloo. Muito depende do que acontecerá nos próximos meses e de se o gabinete do primeiro-ministro será capaz de evitar um inquérito público total sobre o escândalo.

"Se a eleição fosse no mês que vem, provavelmente seria devastador e modificaria diretamente a campanha", disse Macfarlane. "É difícil dizer se o caso estará na mente dos canadenses em agosto ou setembro." 

Enquanto isso, Trudeau tem sete meses para recuperar o que puder de sua reputação e esperar que o escândalo se dilua na mente dos eleitores quando eles voltarem às urnas. 

"Ele tem de parar com qualquer fingimento e verniz de que é o cara dos 'caminhos ensolarados' ou o Sr. Limpeza", disse Kurl, a diretora da firma de pesquisas. "Agora ele terá de competir na política à moda antiga", acrescentou ela. 

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves 

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