Descrição de chapéu The New York Times

Queda do Estado Islâmico enche campo de detenção com famílias em limbo

Milhares de pessoas que vieram de outros países para se unir aos jihadistas agora não têm para onde ir

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Ben Hubbard
Campo Al Hol (Síria) | The New York Times

​​​Ela deixou a Holanda para fazer parte do Estado Islâmico na Síria e se casou com um combatente nesse país. Seu marido foi morto, então ela se casou com outro combatente, que a engravidou antes de ser morto também.​

Mulheres e crianças ligados ao Estado Islâmico no campo de Al Hol, na Síria
Mulheres e crianças ligados ao Estado Islâmico no campo de Al Hol, na Síria - Ivor Prickett/The New York Times

​​Este mês, quando o Estado Islâmico desabou, ela se rendeu às forças apoiadas pelos EUA, juntamente com seu filho, e foi parar no grande acampamento de barracas de Al Hol, inchado ao máximo com a chegada dos remanescentes humanos do chamado califado.

“Tudo o que eu quero é voltar a ter uma vida normal”, disse Jeanetta Yahani, 34 anos, com seu filho Ahmed, 3 anos, agarrado à sua perna e sacudido por tosse violenta.

O anúncio feito uma semana atrás de que o EI perdera seu derradeiro pedacinho de território na Síria foi um marco na batalha contra a rede terrorista mais temível do mundo

Mas levantou perguntas urgentes sobre o que fazer com dezenas de milhares de pessoas que vieram de todo o mundo unir-se aos jihadistas e agora não têm para onde ir.

Al Hol é um aglomerado isolado de barracas espalhadas sobre terreno rochoso, cercado por guardas armados e uma cerca metálica, que em dezembro continha cerca de 9.000 pessoas.

Com a queda dos últimos territórios dominados pelo Estado Islâmico, sua população cresceu para mais de 72 mil pessoas.

A explosão populacional está onerando os recursos do campo até o limite, provocando superlotação e gerando longas filas para comida, combustível e água potável.

Caminho enlameado do campo Al Hol, na Síria, com mulheres e crianças que eram ligados ao Estado Islâmico
Caminho enlameado do campo Al Hol, na Síria, com mulheres e crianças que eram ligados ao Estado Islâmico - Ivor Prickett/The New York Times

Numa visita rara à seção do campo ocupada por estrangeiros, na quinta-feira (28), uma equipe de jornalistas do The New York Times se deparou com uma cena internacional de mulheres e crianças perdidas e miseráveis. 

Percorrendo caminhos lamacentos e cobertos de lixo entre as fileiras de barracas brancas, ouvimos grupos de mulheres conversando em inglês, russo, francês, holandês e chinês. Vimos crianças loiras e morenas brincando juntas na lama.

Uma alemã me contou que viera à Síria com seu marido, que é médico. Agora ela não tinha ideia de onde ele estava, e ela estava no campo, sem perspectivas de sair de lá, com um bebê nos braços e um filho de cerca de 2 anos agarrado à sua perna.

Mas ela não queria retornar à Alemanha, que considera um país de infiéis.“Não quero criar meus filhos numa sociedade totalmente corrupta, onde todos os pecados são promovidos”, ela disse, negando-se a dar seu nome.

Era melhor enfrentar as dificuldades na Síria, ela explicou. “Tudo isto é temporário. A vida após a morte é eterna.”

Embora o Estado Islâmico já não controle o vasto território que antes se estendia pelo Iraque e a Síria, as mulheres no campo ainda obedecem as regras da organização, usando vestes pretas e véus que cobrem o rosto, deixando apenas uma fenda aberta na altura dos olhos.

Suas roupas estavam sujas, seus sapatos enlameados. Muitas carregavam criancinhas com tosse forte e nariz escorrendo. 

Mulheres cobertas por véu aguardam no campo
Mulheres cobertas por véu aguardam no campo - Ivor Prickett/The New York Times

Outras crianças vendiam biscoitos e refrigerantes que seus parentes tinham conseguido levar ao campo ou estavam nas filas longas formadas para comida, água potável e combustível para geradores.

Al Hol é o terceiro de três campos de detenção sob a responsabilidade da administração liderada por curdos no nordeste da Síria. Outros campos se espalham pelo Iraque e a Síria.

Ao lado de dezenas de milhares de sírios e iraquianos, os campos na Síria abrigam 12 mil mulheres e crianças estrangeiras, segundo Redur Xelil, representante sênior das Forças Democráticas Sírias, a milícia apoiada pelos EUA que combateu os jihadistas. 

A força também tem mais de 8.000 combatentes em suas prisões, entre eles mil estrangeiros.

Alguns poucos lugares, incluindo França, Rússia e Tchetchênia, receberam de volta um número minúsculo de seus cidadãos, em sua maioria mulheres, crianças e órfãos. Mas a maioria dos países de origem dos militantes estrangeiros não quer receber de volta os ex-residentes do califado, que por essa razão estão parados nos campos, em território instável e sem estado.

A administração local não possui os recursos necessários para lidar com eles e teme que a insuficiência de apoio internacional possa ajudar o Estado Islâmico a se reformar.

“Há pouco apoio, pouca resposta”, disse um dos administradores do campo, Mohammed Bashir.

Nesta semana, autoridades locais pediram a criação de um tribunal internacional para levar os combatentes estrangeiros a julgamento, mas a ideia recebeu pouco apoio internacional e provavelmente seria bloqueada pelo governo sírio.

É difícil determinar a origem exata das mulheres e crianças nos campos, já que muitas não possuem documentos de identidade e usam nomes falsos, mas, de modo geral, elas são vistas como menos perigosas que os homens. 

Algumas delas, porém, também foram combatentes. E algumas ainda endossam a ideologia dos extremistas, razão por que as autoridades locais relutam em permitir que elas saiam do campo.

Mais de 9.000 dos residentes em Al Hol são estrangeiros mantidos em uma seção especial, que visitei com um fotógrafo na quinta-feira (28).

Assim que entramos, mulheres se aproximaram para perguntar se podíamos ajudá-las a retornar a seus países ou localizar pessoas queridas.

Mulheres e crianças cruzam o deserto em ônibus que têm como direção o campos controlados por milícias curdas
Mulheres e crianças cruzam o deserto em ônibus que têm como direção o campos controlados por milícias curdas - Ivor Prickett/The New York Times

“Você é do Crescente Vermelho sueco?”, uma mulher perguntou, afastando-se depois de eu dizer que não.

“Sou de um país que ninguém conhece, por isso nunca vou conseguir sair daqui”, falou uma mulher das Seychelles.

Cerca de dois terços dos moradores de Al Hol são crianças. Algumas crianças são órfãs. Muitas descreveram com detalhes e pouca emoção como seus pais foram mortos. Todas já testemunharam violência e algumas foram ensinadas a praticá-la.

Funcionários dos campos dizem que estão sobrecarregados demais tentando providenciar barracas e alimentação para conseguirem oferecer ensino ou outras atividades, muito menos lidar com os problemas psicológicos das pessoas ou reeducar crianças formadas pelos jihadistas. 

O desafio é intensificado pelo fato de alguns dos pais ainda endossarem a ideologia dos jihadistas.

“A mentalidade é a mesma”, disse Bashir, o administrador do campo. “Nada mudou. As crianças são inocentes, mas, por terem acabado aqui no campo, vão aprender o que seus pais lhes ensinam.”

Tradução de Clara Allain

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