Vídeo de matança em mesquita evocaria linguagem de jogos de tiro

Pesquisadores acadêmicos analisam aspectos da transmissão, feita ao vivo

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Frame mostra assassino em ação em Christchurch; massacre foi transmitido ao vivo em redes sociais; na foto vemos a mão que empunha uma arma de repetição, na qual o matador fez inscrições em branco, aparentemente mensagens em alusão a outros crimes
Frame mostra assassino em ação em Christchurch; massacre foi transmitido ao vivo em redes sociais - Reprodução
São Paulo

No banco do carro, vemos as armas.

Não só; nós as vemos do ponto de vista daquele que, sabemos, as usará para matar muçulmanos que realizavam suas orações de sexta-feira em Christchurch, num dos dois ataques a mesquitas da cidade neozelandesa, que deixaram 49 mortos e dezenas de feridos.

Vendo as ruas pelo para-brisa, enquanto toca uma música nacionalista sérvia, não identificamos se a náusea se deve ao desenlace já sabido ou à visão elevada propiciada pela câmera no capacete.

Chegando ao destino, a câmera passa a nos oferecer uma visão que, sem ser banal, é conhecida: rajadas e lampejos que abatem pessoas. Uma atrás da outra. 

Muitos reconheceram na forma como o assassino de Christchurch registrou a matança uma semelhança com as imagens de videogames de tiro em primeira pessoa. 

Astrid Ensslin é professora na Universidade de Alberta, no Canadá, onde pesquisa interseções entre mídia digital e cultura, estudos literários e linguística aplicada. 

Apesar de ter visto apenas parte da gravação, em um site de notícias, Ensslin, autora de livros que tratam da linguagem de games, disse que a visão subjetiva “certamente evoca a estética dos jogos de tiro em primeira pessoa”.

Reforçam a semelhança a visão do atirador ao “escolher as armas e navegar até a cena do massacre”.

Outros estudiosos da área, como o dinamarquês Espen Aarseth disseram não ter visto o vídeo e não ter a intenção de ver, para não contribuir para a difusão do ato, como desejaria o assassino.

Trabalhando com estética de jogos de computador na Universidade de Copenhague desde 2003, recorda que “a perspectiva subjetiva é um modo usado em alguns videogames, mas muito antes, no cinema”, diz, “sem falar na pintura renascentista”.

“Em essência”, diz, a visão subjetiva “é o ponto de vista de um fotógrafo documental com a câmera na mão”. 

Para Aarseth, a ligação não é “com a estética do videogame ou qualquer outra”. 

“O principal elo é com os noticiários e a motivação é, claramente, vender com eficácia a mensagem para a mídia.”

O ponto de vista subjetivo, porém, não é o único utilizado em games, diz a escritora carioca Simone Campos, lembrando que vários empregam a visão de cima, por exemplo.

Ela, que pesquisa em seu doutorado teoria da literatura e games, afirma que “o que alguém que coloca a câmera na cabeça quer é centralizar o ponto de vista”. 

Para Campos, “o homem branco hétero perdeu o monopólio da narrativa e colocar uma câmera na cabeça é recuperar esse monopólio”. 

Teria mais a ver com o que se tem chamado de masculinidade tóxica, evocada entre as explicações para a perpetração de atos violentos.

Henrique Sampaio, jornalista e cofundador do site sobre games Overloadr, acabava de participar de um evento acadêmico que abordava temas como masculinidade tóxica e fetichização de jogos de tiro quando viu a notícia.

Ele ressalta, mais até que a câmera subjetiva, o aspecto de o massacre ter sido exibido numa live de Facebook

“Por ser uma transmissão ao vivo, me remete mais a filmes ou séries com cenas que simulam os jogos de tiro em primeira pessoa”, afirma.

A transmissão ao vivo também chama a atenção de Giselle Beiguelman, artista e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, na qual pesquisa estéticas da memória e as configurações da imagem no século 21.

“As redes sociais alteraram tão profundamente a subjetividade e a relação com as imagens que subverteram a função da câmera. De dispositivo de captação, se transforma em dispositivo de projeção do indivíduo”, afirma.

“O que ‘valida’ essa imagem é um aspecto quantitativo: sua capacidade de viralizar.”

A espetacularização seria, afinal, o que está em nosso poder coibir, como sugere Janet Murray. Professora do Instituto de Tecnologia da Geórgia, ela não vê “qualquer justificativa para um canal de mídia transmitir ou armazenar tal filmagem”.

“Não há forma de representação que não possa ser usada para o mal”, afirma Murray. “O que podemos controlar são os padrões públicos para restringir a divulgação de tais gravações.”

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