Nicarágua vive aumento de violência estatal um ano após início de protestos contra Ortega

Segundo ONU, 62 mil pessoas deixaram o país e 300 foram assassinadas

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Buenos Aires

"Há um ano vivemos com medo. As pessoas saem nas ruas e veem policiais com armamentos de guerra controlando tudo, tem gente estocando comida em casa porque se lembra do trauma que foi para muitos passar pelas privações causadas pela Revolução Sandinista (1979)", diz a escritora Sabrina Duque à Folha.

Autora de "VolcáNica" (editora Penguin, importado), uma coletânea de relatos sobre a Nicarágua dos últimos doze meses que acaba de ser lançada, relata que "a vida aqui já não é como antes, este era um país tranquilo. Os outros países da América Central é que tinham problemas com os enfrentamentos das 'maras' (gangues criminosas), aqui as coisas eram mais estáveis. De um ano para cá tivemos repressões brutais, muitos mortos, refugiados."

A atual crise nicaraguense teve início em 18 de abril de 2018, quando um grupo de estudantes universitários foi às ruas para protestar contra uma reforma do sistema de pensões. Este, porém, é considerado por analistas apenas uma gota d'água num copo já cheio de insatisfação.

"Já há anos vivíamos num país com cada vez menos liberdade de expressão, sem oposição, e, para completar, a economia começou a desandar quando a crise venezuelana fez com que a ajuda que Maduro nos enviava fosse interrompida", relata Carlos Fernando Chamorro, filho da ex-presidente Violeta Chamorro, que hoje vive no exílio, na Costa Rica, de onde edita seu jornal, o El Confidencial.

Manifestantes cantam slogans no aniversário de um ano dos protestos na Nicarágua - REUTERS

As marchas estudantis começaram a chamar mais gente às ruas para pedir a renúncia do governo, e a repressão passou a ser de imensa brutalidade. Além do Exército e da polícia, o ditador Daniel Ortega armou e colocou nas ruas também os militantes da Juventude Sandinista e de outras associações políticas, formando verdadeiras milícias.

"Já quase ninguém mais se anima a sair na rua. Quando se resolve fazer uma manifestação, é tanta a violência da repressão, que está todo mundo assustado e pensa duas vezes antes de ir", conta Duque.

Relatório da ONU (Organização das Nações Unidas) divulgado nos últimos dias diz que, desde o início dos protestos, 300 pessoas foram assassinadas, duas mil feridas, 62 mil deixaram o país, 779 são consideradas "presos políticos" e há dezenas de desaparecidos.

O país que mais recebeu refugiados nicaraguenses foi a Costa Rica (55 mil), mas, segundo a própria ONU, tudo indica que esse número vai aumentar. "Isso pode causar distúrbios não só na América Central, como também na América do Sul, como se já não bastasse a crise venezuelana", diz o analista político Juan Gabriel Tokatlian.

O ditador Daniel Ortega, que paradoxalmente ajudou a liberar o país da ditadura dos Somoza, no passado, está no poder desde 2007. A reeleição está permitida de modo indefinido no país e o último pleito foi marcado pelas irregularidades, sem a presença da oposição e sem observadores internacionais.

Polícia chega para conter protestos nas ruas de Manágua, em função do aniversário de um ano das marchas contra o ditador da Nicarágua, Daniel Ortega - AFP

A ex-presidente do Chile, Michelle Bachelet, hoje Alta Comissionada das Nações Unidas para os direitos humanos, pediu que o governo permita o direito de manifestação dos que saem às ruas e que promova o diálogo com a oposição.

Os protestos mais recentes, porém, nos últimos dias 16 e 30 de março, resultaram em dez pessoas feridas e na prisão de outras 170. O relatório da ONU dá conta também do uso de tortura nas prisões.

A atividade jornalística foi dinamitada. Um dos principais canais de TV aberta, o 100% Notícias, foi tirado do ar em dezembro e seu dono e fundador, Miguel Mora, está preso. A Redação do El Confidencial foi invadida e confiscada pelo governo. Há relatos de torturas de jornalistas presos.

Em março, o governo atendeu às pressões internacionais e abriu um canal de diálogo com a oposição. Como consequência, foram soltos vários manifestantes, mas com liberdade restringida. O outro pedido da oposição, o de que houvesse eleições livres, foi negado pelo ditador, que com isso encerrou as conversas.

As consequências dessa crise hoje não se limitam ao medo da repressão que a população sente. A economia vem sendo muito afetada. O PIB teve uma contração de 4% em 2018, sua pior performance desde os anos 1980. A indústria do turismo, que contribuía em 6% do PIB, está atrofiada. Nas vésperas da Semana Santa, os donos de hotéis e pousadas reclamam não terem recebido quase nenhuma reserva.

Há também um retrocesso na área de saúde, uma vez que centenas de médicos foram demitidos por desobedecer as autoridades que os proibiram de atender os feridos nos protestos.

Os EUA já colocaram sanções econômicas aos membros da cúpula do governo nicaraguense. Doze países da OEA querem aplicar a cláusula democrática para forçar o governo a restaurar as liberdades.

Ortega, porém, não parece por ora ter sentido nenhum desses golpes. Apoiado em seu Exército e nas milícias e com o apoio internacional da Rússia e de Cuba, segue sem querer soltar as rédeas do país.

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