Descrição de chapéu The New York Times

Denúncia de produção negligente provoca exame de outro jato da Boeing

Funcionários da empresa em Charleston reclamam de condições de fabricação do Dreamliner

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Um 787 Dreamliner, da Boeing, sendo construído para Air India na fábrica de North Charleston, na Carolina do Sul, Estados Unidos
Um 787 Dreamliner, da Boeing, sendo construído para Air India na fábrica de North Charleston, na Carolina do Sul, Estados Unidos - Randall Hill - 4.abr.15/Reuters
Natalie Kitroeff David Gelles
Carolina do Sul (EUA) | The New York Times

Quando a Boeing anunciou sua nova fábrica perto de Charleston, em 2009, a instalação foi alardeada como um polo industrial de alta tecnologia, para produzir uma das mais avançadas aeronaves do mundo. Mas na década que se passou a fábrica, que faz o jato 787 Dreamliner, foi acusada de produção negligente e fraca supervisão, que ameaçaram comprometer a segurança do avião. 

Uma análise feita por The New York Times de centenas de páginas de emails internos, documentos corporativos e registros federais, assim como entrevistas com mais de uma dúzia de funcionários atuais e antigos, revela uma cultura que muitas vezes valorizava mais a velocidade de produção que a qualidade.

Enfrentando longos atrasos de fabricação, a Boeing pressionou sua força de trabalho a produzir os Dreamliners rapidamente, às vezes ignorando dúvidas levantadas por empregados.

Queixas sobre o ritmo frenético refletem preocupações maiores sobre a empresa depois dos dois acidentes fatais envolvendo outro jato, o 737 Max. A Boeing enfrenta questões sobre se a corrida para fazer o Max e alcançar sua rival Airbus a levou a desprezar riscos de segurança no projeto, como o sistema contra perda de sustentação que influiu nas duas quedas.

Lapsos de segurança na fábrica de North Charleston chamaram a atenção de companhias aéreas e reguladores. A Qatar Airways parou de aceitar aviões da fábrica depois que erros de fabricação danificaram seus jatos e atrasaram entregas.

Trabalhadores apresentaram mais de dez denúncias e queixas de segurança aos órgãos reguladores federais, descrevendo problemas como defeitos de fabricação, detritos deixados nos aviões e pressão para não relatar violações. Outros processaram a companhia, dizendo que sofreram retaliação depois de acusar erros de fabricação.

Joseph Clayton, técnico na fábrica de North Charleston, uma das duas onde o Dreamliner é construído, disse que era comum encontrar restos de produtos perigosamente próximos aos cabos embaixo das cabines.

Aeronaves do modelo 737 MAX na fábrica da Boeing em Renton, no estado de Washington
Aeronaves do modelo 737 MAX na fábrica da Boeing em Renton, no estado de Washington - Lindsey Wasson - 21.mar.19/Reuters

"Eu disse à minha mulher que não gostaria de voar num deles", disse Clayton. "É simplesmente uma questão de segurança." 

Em uma indústria em que a segurança é vital, as preocupações coletivas sobre dois aviões cruciais da Boeing –o pé-de-boi da empresa, o 737 Max, e outra joia da coroa, o 787 Dreamliner– apontam para potenciais problemas sistêmicos.

Os reguladores e legisladores estão examinando mais de perto as prioridades da empresa, e se os lucros se sobrepuseram à segurança. A liderança da Boeing, uma das maiores exportadoras dos Estados Unidos, hoje se vê na posição incomum de precisar defender suas práticas e motivações.

"Os funcionários da Boeing na Carolina do Sul estão produzindo os mais altos níveis de qualidade em nossa história", disse em um comunicado Kevin McAllister, chefe de aviões comerciais da Boeing. "Estou orgulhoso do excepcional compromisso de nossas equipes com a qualidade e endosso o trabalho que eles fazem todos os dias."

Todas as fábricas lidam com erros de fabricação, e não há evidências de que os problemas na Carolina do Sul levaram a grandes incidentes de segurança. O Dreamliner nunca caiu, mas a frota foi estacionada por um curto período depois de um incêndio numa bateria. As companhias aéreas também têm confiança no Dreamliner.

Em vários aviões, John Barnett, ex-gerente de qualidade que trabalhou na Boeing durante quase três décadas e se aposentou em 2017, descobriu grupos de aparas de metal penduradas perto da fiação que comanda os controles de voo. Se as peças de metal afiadas –produzidas quando os parafusos são inseridos em porcas– penetrassem nos fios, poderia ser "catastrófico", segundo ele. 

Barnett, que enviou uma denúncia aos órgãos reguladores, disse que pediu insistentemente a seus chefes que removessem as aparas metálicas. Mas eles se recusaram e o deslocaram para outra parte da fábrica.

Uma porta-voz da Administração Federal de Aviação (FAA), Lynn Lunford, disse que o órgão inspecionou vários aviões certificados pela Boeing como livres desses detritos e encontrou os mesmos restos metálicos. Em certas circunstâncias, segundo ela, o problema pode causar curto-circuitos elétricos e incêndios. 

As autoridades acreditam que as aparas podem ter danificado um avião em serviço certa vez em 2012, segundo duas pessoas informadas sobre o caso. 

A FAA emitiu uma diretriz em 2017 exigindo que os Dreamliners fossem limpos desses detritos antes de serem entregues. A Boeing disse que estava acatando e trabalhando com o fornecedor para melhorar o desenho da porca. Mas determinou que a questão não representasse uma questão de segurança de voo. 

"Como gerente de qualidade da Boeing, você é a última linha de defesa antes que um defeito apareça diante do público viajante", disse Barnett. "E ainda não vi sair um avião de Charleston em que eu assinasse dizendo que é seguro e pilotável."

"Poderia travar as engrenagens"

Menos de um mês depois do acidente do segundo jato 737 Max, a Boeing chamou os empregados de North Charleston para uma reunião urgente. A companhia tinha um problema: os clientes estavam encontrando objetos aleatórios em aviões novos.

Um gerente geral implorou aos trabalhadores para que verificassem com mais cuidado, mencionando os acidentes.

"A companhia está passando por um momento muito difícil agora", disse ele, segundo dois funcionários que estavam presentes e falaram sob a condição do anonimato. 

Detritos de objetos estranhos é um problema comum na aviação. Os empregados devem limpar o ventre da aeronave enquanto trabalham, muitas vezes com um aspirador, para que não contaminem acidentalmente os aviões com aparas, ferramentas, peças e outros artigos. 

Mas os detritos continuaram sendo um problema persistente na Carolina do Sul. Em um email neste mês, Brad Zaback, chefe do programa do 787, lembrou à equipe de North Charleston que objetos aleatórios deixados no interior dos aviões "podem ter sérias consequências de segurança quando não percebidos".

A questão já prejudicou a Boeing em outras fábricas. Em março, a Força Aérea suspendeu as entregas do avião-tanque KC-46, construído em Everett, Washington, depois de encontrar uma chave-inglesa, parafusos e lixo no interior de aviões novos. 

"Falando francamente, isso é inaceitável", disse a uma subcomissão do Congresso em março um secretário-assistente da Força Aérea, Will Roper. "Nossas linhas de voo são impecáveis. Nossos depósitos são impecáveis, porque detritos representam uma questão de segurança." 

A Boeing disse que estava trabalhando para resolver a questão com a Força Aérea, que retomou as entregas neste mês. 

Na fábrica em North Charleston, os trabalhadores de hoje e antigos descrevem a batalha inútil contra os detritos.

"Encontrei tubos de cola, porcas, coisas do processo de construção", disse Rich Mester, um ex-técnico que revisava os aviões antes da entrega. Mester foi demitido e um pedido de indenização foi entregue à Comissão Nacional de Relações Trabalhistas por sua demissão. "Eles deveriam ter sido inspecionados por essas coisas, e ainda põem a culpa em nós." 

Empregados encontraram uma escada e uma série de lâmpadas deixadas na cauda de aviões, perto das engrenagens do estabilizador horizontal. "Poderiam ter travado as engrenagens", disse Mester.

Trabalhadores não sindicalizados

Quando foi revelado em 2007, o 787 Dreamliner era o novo avião mais importante da Boeing em uma geração. O jato de corpo largo foi um sucesso com as companhias que queriam economizar combustível e encomendaram centenas de aviões, com custo de mais de US$ 200 milhões cada um.

Estimulada pela alta demanda, a Boeing montou uma nova fábrica. 

North Charleston era ideal de muitas maneiras. A Carolina do Sul tem a menor porcentagem de trabalhadores sindicalizados do país, dando à Boeing uma força de trabalho potencialmente menos cara.
A Carolina do Sul deu quase US$ 1 bilhão em incentivos fiscais, incluindo US$ 33 milhões para treinar trabalhadores locais. A Boeing prometeu criar 3.800 empregos. 

Enquanto a empresa alimentou gerações de profissionais aeroespaciais na região de Seattle (Estado de Washington), não havia força de trabalho comparável na Carolina do Sul. Os diretores tiveram de recrutar em faculdades técnicas de Tulsa (Oklahoma) e Atlanta (Geórgia). 

Os diretores também foram aconselhados a não contratar trabalhadores sindicalizados da fábrica da Boeing em Everett, onde o Dreamliner também é feito, segundo dois ex-empregados. 

"Eles não queriam que trouxéssemos funcionários sindicalizados para uma área não sindical", disse David Kitson, ex-gerente de qualidade que supervisionou uma equipe responsável por garantir a segurança em voo dos aviões.

"Tivemos dificuldade com isso", disse Kitson, que se aposentou em 2015. "Não havia a reserva de mão de obra no local." Outro ex-diretor, Michael Storey, confirmou esse relato.

O 787 já estava anos atrasado por causa de problemas na fabricação e atrasos de fornecedores. A escassez de mão de obra em North Charleston só piorou as coisas.

O entusiasmo inicial quando os primeiros Dreamliners entraram em operação no final de 2011 durou pouco. Cerca de um ano depois, toda a frota foi estacionada por causa de um incêndio na bateria de um avião da Japan Airlines.

A Boeing foi obrigada a indenizar as companhias, reduzindo seu lucro. Enquanto isso, os atrasos na produção cresciam, e a Airbus estava perto com um avião rival, o A350.

Em North Charleston, a redução de tempo teve consequências. Centenas de ferramentas começaram a desaparecer, segundo queixas apresentadas em 2014 à FAA por dois ex-gerentes, Jennifer Jacobsen e David McClaughlin. Algumas foram "encontradas espalhadas pela aeronave", disse Jacobson em sua queixa. 

Os dois gerentes também disseram que foram pressionados para encobrir atrasos. Os gerentes mandavam os funcionários instalar equipamentos com defeito para fazer "parecer para os executivos da Boeing em Chicago, os compradores de aviões e acionistas da Boeing que o trabalho estava no prazo, quando na verdade a aeronave estava muito atrasada", segundo suas queixas. 

A FAA investigou as queixas e não encontrou violações em sua visita à fábrica no início de 2014. Mas o órgão disse que antes havia encontrado "controle de ferramentas inadequado" e a "presença de detritos e objetos estranhos". 

Os dois gerentes saíram depois de ser acusados de aprovar imprecisamente as fichas de horário de empregados que não se reportaram a eles. Ambos alegam que sofreram retaliação por denunciar as violações. Por meio de seu advogado, Rob Turkewitz, eles se recusaram a comentar.

Gordon Johndroe, porta-voz da Boeing, disse: "Nós priorizamos a segurança e a qualidade mais que a velocidade, mas as três podem ser alcançadas enquanto se produz um dos aviões mais seguros em operação hoje". 

Os aviões também foram danificados durante a fabricação. Um Dreamliner construído para a American Airlines sofreu uma inundação na cabine tão severa que os assentos, painéis do teto, carpetes e eletrônicos tiveram de ser substituídos, um processo que demorou semanas. 

Peças defeituosas desaparecem

No interesse de cumprir prazos, os gerentes às vezes minimizavam ou ignoravam os problemas, segundo trabalhadores atuais e passados.

Barnett, o ex-gerente de qualidade, soube em 2016 que um gerente sênior tirou um tubo hidráulico dentado de uma lata de rejeitos e que o tubo, parte do sistema central que controla o movimento do avião, foi instalado em um Dreamliner.

Barnett disse que o gerente lhe havia dito: "Não se preocupe com isso". Ele enviou uma queixa aos recursos humanos, segundo documentos da empresa. 

Ele também relatou à diretoria que peças defeituosas desapareceram, levantando a perspectiva de que foram instaladas em aviões. Seus chefes, segundo disse, lhe disseram para terminar a documentação sobre as peças desaparecidas sem descobrir aonde elas tinham ido parar.

A FAA investigou e descobriu que a Boeing tinha perdido algumas peças danificadas. A Boeing disse que por questão de precaução tinha enviado às companhias aéreas avisos sobre o problema. A companhia disse que também investigou o tubo hidráulico defeituoso e não confirmou as denúncias de Barnett.

"Questões de segurança são investigadas imediatamente, e as mudanças são feitas quando necessário", disse o porta-voz da Boeing. 

Mas vários ex-funcionários disseram que gerentes de alto nível pressionaram os inspetores de qualidade a parar de registrar defeitos. 

A ex-gerente de qualidade Cynthia Kitchens disse que seus superiores a penalizaram em revisões de desempenho e a criticaram no chão de fábrica depois que ela localizou feixes de fios cheios de aparas de metal e peças metálicas defeituosas que foram instaladas nos aviões.

"Foi intimidação", disse ela. "Toda vez que eu começava a encontrar coisas, era assediada." 
Kitchens se demitiu em 2016 e processou a Boeing por discriminação por idade e sexo. O caso foi arquivado. 

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves 

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