Descrição de chapéu The New York Times

Em San Francisco, moradores vasculham lixo de bilionários para sobreviver

Roupas, aparelhos e objetos em boas condições são encontrados com facilidade nas calçadas

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Jake Orta examina aparelho de som encontrado em San Francisco - Jim Wilson/The New York Times
Thomas Fuller
San Francisco | The New York Times

A três quadras da casa de US$ 10 milhões, em estilo Tudor, de Mark Zuckerberg em San Francisco, Jake Orta vive em um pequeno apartamento de uma só janela, cheio de lixo.

Há um capacete rosa, para bicicleta, de criança, que Orta tirou da lixeira do outro lado da rua da casa de Zuckerberg. E um aspirador de pó, um secador de cabelo, uma máquina de café —tudo ​funcionando— , além de uma pilha de roupas que ele levou para casa em uma sacola de papel da Whole Foods, recuperados do lixo de Zuckerberg.

Militar veterano que ficou sem teto e hoje vive em habitação financiada pelo governo, Orta é um catador de lixo em tempo integral, parte de uma economia subterrânea em San Francisco de pessoas que trabalham nas calçadas em frente a residências que valem milhões de dólares, procurando coisas que elas possam vender.

Catar lixo é uma profissão mais frequentemente associada a favelas do que a uma cidade às portas do Vale do Silício. A Aliança Global de Catadores de Lixo, organização sem fins lucrativos de pesquisa e defensoria, reúne mais de 400 entidades de catadores em todo o mundo, quase todas na América Latina, África e sul da Ásia. 

Mas existem catadores de lixo em muitas cidades americanas e, assim como o crescente número de pessoas sem teto em San Francisco, elas simbolizam os extremos do capitalismo americano. Um instantâneo de 2019: um dos homens mais ricos do mundo e um catador de lixo moram a poucos minutos de caminhada um do outro.

Jake Orta vasculha lixeira em San Francisco - Jim Wilson/The New York Times

Orta, 56, considera-se mais um caçador de tesouros.

"Acho incrível o que as pessoas jogam fora", disse ele numa noite recente, quando encontrou um par de jeans de marca famosa, com muito pouco uso, uma jaqueta preta nova, tênis Nike cinza e uma bomba para pneus de bicicleta. "Você nunca sabe o que vai encontrar." Orta diz que sua meta é ganhar de US$ 30 a US$ 40 por dia com suas descobertas, uma renda de sobrevivência de aproximadamente US$ 300 por semana.

Catar lixo é ilegal na Califórnia —quando uma lixeira é colocada na calçada, o conteúdo é considerado posse da empresa de coleta de lixo, segundo Robert Reed, porta-voz da Recology, empresa contratada para coletar o lixo de San Francisco.

Mas a lei raramente é aplicada.

Orta nasceu em San Antonio, Texas; tinha 11 irmãos. Passou mais de 12 anos na Força Aérea, abastecendo aeronaves durante a guerra do Golfo Pérsico em 1991, e depois foi enviado à Alemanha, Coreia e Arábia Saudita. Na época em que voltou para os Estados Unidos, sua mulher o havia deixado e ele enfrentou o alcoolismo e a falta de moradia. Mudou-se para San Francisco, e cinco anos atrás se inscreveu num programa de ajuda a veteranos sem-teto. 

Ao anoitecer ele sai de seu prédio de apartamentos, espremido entre um conhecido local de almoço de trabalhadores de tecnologia e uma loja de cannabis no centro do bairro Mission. O cheiro de maconha enche o vestíbulo. Subindo um morro íngreme ladeado por árvores maduras, ele passa por casas que poderiam ser obras de arte: vitorianas, algumas com vitrais, cornijas elaboradas e sancas pintadas em uma paleta suave de cores pastéis. Uma turnê virtual do bairro no site Zillow mostra que casas avaliadas em US$ 3 milhões ou mais são a norma.

Mas Orta não olha para a arquitetura. Caminha pelas ruas ligeiramente curvado, os olhos pregados no chão e com uma lanterna no bolso de trás. Seus amigos o chamam de "O Localizador".

Nas seis vezes em que o repórter saiu com Orta, ele seguiu diversos trajetos, mas geralmente terminava explorando seus becos preferidos e um depósito de lixo que tem sido fértil. (A primeira regra da catação de lixo, diz ele, é garantir que não haja gambá ou texugo lá.) Em março, o depósito produziu uma caixa de taças, pratos e bandejas de prata, como se alguém tivesse arrancado uma toalha de mesa de um banquete em um castelo europeu.

"Como é que dizem?", comentou certa noite William Washington, um dos colegas de catação de Orta. "O lixo de um homem é o tesouro de outro." Outras descobertas recentes de Orta: telefones, iPads, três relógios de pulso e sacos de maconha. ("Eu a fumei", disse ele quando perguntado quanto conseguiu pela erva.)

No final de agosto ou setembro, quando os participantes voltam do festival anual Burning Man, no deserto de Nevada, Orta disse que muitas vezes encontra bicicletas abandonadas cobertas de areia fina.

Orta disse que só pega o que foi claramente jogado fora por pessoas. Mas 14 anos atrás ele passou alguns meses na cadeia por arrombar a garagem de uma pessoa em Sacramento e tentar roubar uma chave inglesa para sua bicicleta. "Foi um erro idiota", disse. 

Há anos San Francisco é um polo global de reciclagem, atraindo uma série de ministros de governo, jornalistas e estudantes do mundo todo para examinar as instalações de triagem da Recology. Mas a cidade também está cheia de pessoas jovens e ricas, preocupadas com empregos cansativos e longos trajetos no transporte, para quem o lixo é uma maneira tentadora de se livrar daqueles jeans ou aparelhos eletrônicos velhos que enchem seus armários.

"Temos muito lixo de conveniência", disse Reed, o porta-voz da Recology. "Tem cada vez mais gente da tecnologia aqui, e a cidade está se movendo cada vez mais depressa. Essas pessoas têm períodos de atenção curtos. Algumas jogam fora objetos que deveriam ser direcionados a uma loja de curiosidades." 

Os catadores de lixo se enquadram em diversas categorias gerais. Há décadas, mulheres e homens mais velhos recolhem papelão, papel, latas ou garrafas, arrastando sacolas imensas pela cidade e levando-as para centros de reciclagem para ganhar um trocado. 

Produtos encontrados no lixo são vendidos na calçada - Jim Wilson/The New York Times

A cidade está mais preocupada com as caminhonetes velhas, chamadas de frotas de mosquitos, que percorrem San Francisco recolhendo recicláveis em escala industrial, privando a Recology, e a prefeitura, de receita, disse Bill Barnes, porta-voz do gabinete do prefeito.

"É um desafio significativo para os moradores, porque resulta em índices mais altos de lixo", disse Barnes.

Os catadores como Orta estão em outra categoria, visando artigos nas lixeiras pretas cujo conteúdo iria para o que é conhecido como o "poço" —um buraco no chão nos arredores da cidade que parece uma piscina enorme, onde o lixo não reciclável é esmagado e compactado por uma enorme escavadeira e depois carregado por uma frota de caminhões até um aterro a uma hora e meia de viagem. A carga exportada pela cidade enche cerca de 50 grandes caminhões por dia.

Nick Marzano, fotógrafo australiano que publica uma revista elegante chamada Mission Gold, que documenta o mundo dos catadores de lixo em San Francisco, avalia que haja muitas centenas de catadores na cidade.

"Eu o considero um serviço público", disse Marzano. "Em vez de as coisas irem para o aterro, estão sendo reutilizadas." Marzano disse que há sobreposição entre a catação de lixo, a falta de moradias e o uso de drogas pelo público —as situações de rua que são as maiores preocupações da população há vários anos. Mas ele considera a catação de lixo, e os mercados espontâneos nas calçadas que aparecem em bairros como Mission e Tenderloin, como um tipo de empreendedorismo. 

"É a forma básica de renda para pessoas que não têm outra", disse ele. 

Orta vende o que ele recupera em mercados improvisados na Mission Street ou num mercado mais formal aos sábados na Julian Avenue. Brinquedos raramente são vendidos —os pais não gostam da ideia de que vieram do lixo. Roupas femininas são duvidosas. Mas os homens não parecem se importar muito com o lugar de onde vieram suas roupas, e é fácil vender jeans por US$ 5 a US$ 10.

O artigo preferido que Orta encontrou no lixo é um que ele não vende: uma coleção de jornais do mundo todo, documentando o curso da Segunda Guerra Mundial. Ele se pergunta por que alguém teria jogado aquilo fora.

Em uma noite de terça-feira recente —a véspera da catação no bairro de —Zuckerberg, Orta não encontrou nada que valesse a pena nas duas lixeiras do fundador do Facebook. Zuckerberg tem pelo menos mais uma casa na área da baía de San Francisco; esta ele comprou em novembro de 2012 por quase US$ 10 milhões por meio de uma empresa que ele controla. 

No latão azul para reciclagem marcado com o endereço de Zuckerberg, havia latas de refrigerante diet A&W, caixas de papelão e uma mala-direta de cartão de crédito. No latão preto, para o aterro, havias restos de um jantar congelado de frango, uma baguete passada e recipientes de comida chinesa para "delivery".
Otra rasgou uma sacola que estava na lixeira preta.

"Só lixo... não tem nada aqui."

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves 

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