Memoriais trazem à tona atrocidades de genocídio de Ruanda

Massacre, que completa 25 anos, é recontado em museus com caveiras expostas e fotos de embrulhar o estômago

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Kigali (Ruanda)
 

As colinas verdejantes e as ladeiras puxadas de Kigali, a capital de Ruanda, escondem uma cidade vibrante, considerada uma das mais seguras e limpas da África.

Não se vê lixo nas ruas e, todas as manhãs, mulheres de coletes fluorescentes limpam calçadas e estradas com vassourinhas de palha.

O número de turistas cresce a cada ano no país, assim como o de hotéis de luxo criados em volta dos
passeios para ver os gorilas da montanha, uma atração que ajudou Ruanda a se reinventar.

Os cafés também se multiplicam na capital para celebrar os famosos grãos ruandeses.

Com tanta civilidade, é chocante lembrar que ali, há 25 anos, nesse país de 12 milhões de habitantes, cerca de 1 milhão de pessoas foram assassinadas em cem dias.

Não há rastros do genocídio, a não ser que se vá atrás dos memoriais espalhados pelo país.

No Memorial do Genocídio em Kigali, cerca de 250 mil vítimas estão enterradas num espaço discreto com jardim. No museu, há caveiras expostas sob luz dramática, além de uma linha do tempo com fotos de embrulhar o estômago.

O memorial explica a origem do conflito entre os hutus radicais e a minoria tutsi. Em 1932, os colonizadores belgas começaram a classificar a população por etnia nos cartões de identidade.

Os tutsis passaram a ser privilegiados pelo governo e vistos pelos hutus como um obstáculo para seu
desenvolvimento.

Uma caixa de lenços foi colocada na sala de vídeo, na qual sobreviventes narram as barbaridades que sofreram. O final traz uma mensagem de conciliação e paz, e as vítimas dizem que perdoaram seus algozes, algo difícil de não duvidar.

Outros três memoriais, construídos onde milhares de pessoas foram mortas, ficam fora de Kigali e são preservados de maneira impecável.

Pelos acostamentos, agricultores vão e vem de suas lavouras de batata, mandioca e chá, levando na cintura foices e facões.

É um cenário bucólico, até lembrarmos onde estamos. Para matar tutsis, hutus usaram foices, facões e machadinhas, além de armas vindas de países vizinhos e da França, que tinha forte presença no país ao treinar soldados.

Para brasileiros, é curioso ver inúmeras propagandas da cerveja Skol pintadas nos bares de beira de
estrada.

A Igreja de Ntarama, a 30 km de Kigali, foi palco do assassinato de 5.000 tutsis. Os bancos da igrejinha estão ocupados por roupas e objetos das vítimas, como os infames cartões de identidade.

Uma casa que funcionava como escola guarda uma mancha preta na parede: “Aqui batiam a cabeça das crianças para matá-las”, diz a guia local.

A 20 minutos de carro dali está outra igreja transformada em memorial, a de Nyamata, onde dez mil
foram mortos. Os guias explicam que as igrejas eram refúgios comuns para os tutsis, perseguidos havia décadas. Numa tentativa de massacre em 1992, muitos sobreviveram se escondendo no lugar.

Dois anos depois, não sobrou ninguém.

O piso da entrada traz a marca da granada que destruiu os portões. No subsolo, um espaço foi construído para abrigar centenas de caixões coletivos. Estão todos empilhados, alguns semiabertos, com ossos e caveiras à vista.

No centro, um caixão ganha destaque. “Era uma jovem tutsi, estuprada por diversos hutus e depois
empalada”, conta o guia.

Um dos episódios mais sangrentos do genocídio ocorreu em Murambi, a 160 km de Kigali, numa escola
técnica em construção. Mais de 60 mil tutsis se refugiaram lá, seguindo recomendações de autoridades —as mesmas que mais tarde cortaram água e comida do local.

“Pouca gente tem estômago para entrar aqui”, avisa o guia. “Quer mesmo continuar?”

O alerta precede a entrada nos dormitórios que guardam mil cadáveres mumificados com cal em pó. São
corpos retorcidos e esbranquiçados, alguns ainda com tufos de cabelo e pedaços de roupa, amontoados em cima das camas.

Alguns quartos trazem múmias de crianças. O visitante pode circular pelos quartos, mas não pode fotografar.

Entre 16 e 21 de abril de 1994, os tutsis se protegeram como puderam na escola, com pedras e barricadas.

O memorial não poupa ataques aos franceses, que deveriam ter feito a segurança do espaço.

Segundo o museu, eles enterraram os corpos nos fundos da escola e levantaram uma rede em cima do terreno para jogar vôlei —e esconder o massacre.

Também estupraram sobreviventes e deixaram hutus fugirem para o Zaire (hoje República Democrática do Congo).

Ao final da visita, o cheiro de cal parece impregnado nas roupas, e as imagens brutais ainda dão náusea.

Pergunto ao guia: “Precisa mesmo exibir as múmias?” E ele responde com a naturalidade de quem deve
repetir a resposta todos os dias: “Tem gente que não acredita no genocídio, então precisamos preservar a história para não acontecer de novo”.

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