Descrição de chapéu The New York Times

Rússia encomendou assassinato que não fazia sentido; até matador abrir a boca

Morte teve ligação com ações militares de Moscou em outro país

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Túmulo de Ivan Mamchur, assassinado em Rivne, na Ucrânia - Joseph Sywenkyj/The New York Times
Michael Schwartz
Rivne (Ucrânia) | The New York Times

O alvo vivia no sexto andar de um prédio deprimente na rua Vidinska, em frente a uma moita de chorões. Oleg Smorodinov o localizou ali, alugou um pequeno apartamento no térreo do prédio e ficou à espera.

Ele recebera o nome do alvo de seus dois supervisores em Moscou. Eles se encontraram no café Viena, a algumas quadras da sede da agência de inteligência nacional da Rússia, e lhe entregaram uma lista de seis pessoas na Ucrânia. “Localize essas pessoas”, disseram a Smorodinov, e ele se foi. Já se estava se gabando para amigos de ser espião.

Cada pessoa da lista recebeu um codinome relacionado a flores. Uma era “roseira brava”. Outra era “ranúnculo”. O alvo, um homem chamado Ivan Mamchur, era “rosa”. Para Smorodinov ele era não era ninguém, apenas um eletricista que trabalhava no presídio local. Mas para os supervisores em Moscou, “rosa” era importante.

“Está encharcado de sangue até os cotovelos”, disseram a Smorodinov.

A vigilância transcorreu sem percalços. Mamchur deixava sua esposa e filha todo dia às 7h, ia ao trabalho de bicicleta e voltava para casa toda noite às 18h. “Pontualmente”, recordou Smorodinov.

No dia 16 de setembro de 2016, Smorodinov recebeu uma mensagem de texto de Moscou.

“A rosa precisa ser colhida hoje”, dizia a mensagem, como ele se recordou. “Amanhã ela já será irrelevante.”

Smorodinov se posicionou no corredor diante do apartamento do homem, com um cigarro em uma mão e, na outra, uma pistola pneumática modificada para disparar balas de verdade e equipada com um silenciador.

Quando Mamchur saiu do elevador, Smorodinov o chamou pelo nome e disparou até esvaziar o pente.

Mamchur não tombou imediatamente. Ele se voltou a seu assassino e cambaleou alguns passos antes de dizer, ofegante:

“Não fui eu. Não sou culpado.”

Então caiu no chão de concreto.

Smorodinov fugiu a Moscou, onde seus supervisores o levaram para jantar num restaurante japonês. Para recompensá-lo pelo trabalho, compraram-lhe uma van Mercedes, fotos da qual ele postou em redes sociais. Mas não lhe entregaram todo o pagamento prometido de US$ 5.000, porque ele deixara a arma do crime na Ucrânia.

Smorodinov não sabia ao certo na época por que lhe pediram para matar Mamchur, mas hoje ele acha que sabe a razão.

“Foi vingança”, ele me disse. “O mais provável é que tenha sido por vingança.”
 
“Eles matam pessoas.”

Conheci Smorodinov em outubro passado, durante seu julgamento no tribunal de Rivne, na Ucrânia, dois anos após o assassinato.

Oleg Smorodinov durante julgamento em Rivne, Ucrânia - Joseph Sywenkyj/The New York Times

Os procedimentos pareciam mera formalidade. Todos os envolvidos pareciam entediados. A violência é normal na Ucrânia.

Eu estava viajando pela Rússia e Europa havia meses, cobrindo o envenenamento na Inglaterra, no ano passado, do ex-espião russo Serguei Skripal. O caso desencadeara um confronto geopolítico. Atribuindo o ataque com arma química a dois oficiais do serviço de inteligência militar da Rússia, o GRU, o Reino Unido e seus aliados impuseram sanções e expulsaram mais de 150 diplomatas russos do país.

Para a Ucrânia, a interferência russa é uma realidade antiga. Forças especiais russas tomaram a Crimeia em fevereiro de 2014, e desde então o Kremlin vem fornecendo armas, financiamento e tropas para alimentar uma guerra separatista no leste da Ucrânia que já fez 13 mil mortos.

Assassinatos seletivos são ocorrências frequentes na Ucrânia. As autoridades desse país dizem que equipes de assassinos pagos russos operam livremente em seu território.

“Assassinar pessoas é apenas parte do fluxo de trabalho normal dos serviços de inteligência, por pior isso possa soar”, comentou Oleksiy Arestovych, oficial aposentado do serviço de inteligência militar ucraniano. “Você tem um fluxo de trabalho, você escreve artigos. Eles têm um fluxo de trabalho, eles matam pessoas.”

O envenenamento de Skripal chamou a atenção do Ocidente para esse fato. As autoridades britânicas agora estão revendo os casos de vários russos cujas mortes em solo britânico não foram inicialmente consideradas suspeitas. Nos Estados Unidos, um grupo bipartidário de senadores apresentou recentemente uma lei prevendo que o Departamento de Estado determine se a Rússia deve ser classificada como estado que patrocina o terrorismo.

Autoridades russas negaram o envolvimento de seu país no ataque a Serguei Skripal. Um porta-voz do presidente russo Vladimir Putin disse que o Kremlin não tinha conhecimento de Mamchur ou de Smorodinov.

Exterminadores

Rivne é uma cidade no oeste da Ucrânia que se orgulha de ser antirrussa. Ela tem um monumento que ostenta os rostos espectrais dos 21 filhos da cidade que morreram nos combates ainda em curso no leste do país contra grupos separatistas apoiados pela Rússia.

Smorodinov, 51 anos, é russo étnico e se mudou para o leste da Ucrânia na adolescência. Mais tarde, combateu ao lado dos mesmos separatistas odiados em Rivne.

No primeiro dos três encontros que tivemos no presídio onde ele está encarcerado, Smorodinov abriu um mapa da região central de Moscou que desenhara de memória sobre papel quadriculado. Ele apontou para um quadrado preenchido a lápis e identificado como Café Viena, quase na esquina de um quadrado que representava a sede do Serviço Federal de Segurança russo, ou FSB, o principal sucessor da KGB soviética.

“Eu geralmente encontrava meus supervisores nesse café”, explicou.

Smorodinov nunca foi agente de inteligência, ou pelo menos é o que ele diz. Embora tenha servido na Marinha soviética em dado momento e trabalhado como policial por alguns anos, ele dedicou boa parte de sua vida adulta ao crime organizado, tendo cumprido pena por recebimento de propinas e extorsão. Um ex-parceiro dele no crime me disse que, entre um período e outro passado na prisão, ele trabalhou no tráfico sexual.

Smorodinov está tentando convencer aos promotores no processo sobre Mamchur, e a mim, que ele foi assassino involuntário, ludibriado pelos dois supervisores misteriosos. Disse que, pelo que entendera, sua missão era documentar os movimentos de Mamchur. O assassinato deveria ser realizado por uma equipe de profissionais que ele chama de “os exterminadores”.

“Os exterminadores trabalham só uma hora por dia, ou no máximo duas ou três”, ele falou. “Trabalham sob o princípio de que não existem. Eles chegam e já desaparecem para outra cidade.”

Um fato inconveniente neste cenário é que durante a estadia de Smorodinov em Rivne, seu cúmplice, Kostya, identificado por investigadores como Konstantin Ivanko, lhe trouxe duas armas, uma das quais com silenciador. Em suas comunicações, chamando os alvos por seus codinomes, os dois homens aludiam às armas como “regadores”.

Smorodinov insistiu que, enquanto estava disparando contra Mamchur, pensou que fosse uma farsa, uma maneira de seu empregador testar se ele estava à altura da tarefa. As balas poderiam ter sido de festim, explicou.

Não é uma defesa muito convincente. Alexander Gatiyatullin, líder da quadrilha criminosa com a qual Smorodinov esteve envolvido no início dos anos 2000 e que cumpriu pena com ele, descreve Smorodinov como estúpido, uma pessoa disposta a correr riscos sérios sem pensar nas consequências.

Semanas antes do assassinato de Mamchur, disse Gatiyatullin, Smorodinov se abriu com ele e sua mulher, dizendo que tinha chegado ao cargo de tenente no FSB e que estava trabalhando numa missão especial na Ucrânia.

“Rimos muito”, disse Gatiyatullin. “Ninguém o levava a sério. Então Mamchur foi assassinado. Vi que Smorodinov postou fotos de uma van Mercedes e fiquei imaginando como ele teria conseguido o dinheiro para isso.”

Ele acrescentou: “Acho que alguns homens do FSB o chamaram para uma reunião, viram que ele é um idiota e acharam que podiam usá-lo.”

A lista

Os promotores parecem pouco interessados na razão de Mamchur ter virado alvo. Para autoridades ucranianas, a resposta parece óbvia.

“Esse crime fez parte de uma rede interligada de crimes cujo objetivo principal é desestabilizar o país”, me disse o chefe da polícia nacional da Ucrânia, Serhii Knyazev.

Mas não foi tão simples assim. Desde a manhã de nosso primeiro encontro no tribunal, Smorodinov havia falado de uma lista de seis nomes. Todos eram ucranianos, e sua primeira missão tinha sido localizar cada um deles. Uma vez isso feito, ele foi enviado a Rivne.

Eu presumira que os nomes da lista eram ligados de alguma maneira ao conflito contínuo da Rússia na Ucrânia, que o Kremlin estava buscando se vingar de indivíduos ligados aos combates. Quando investiguei os nomes, descobri que todos de fato compartilhavam um passado militar.

Mas havia um fato surpreendente. O ponto em comum entre todos na lista não era o conflito na Ucrânia. Era uma guerra russa diferente.

Uma guerra diferente

No início de agosto de 2008, corri de Moscou a Tbilisi para cobrir o conflito que estava irrompendo entre a Rússia e a República da Geórgia. Eu nunca antes cobrira uma guerra. Tinha contratado um motorista para levar a mim e um fotógrafo. Queríamos chegar o mais perto possível da ação. Não levou muito tempo para chegarmos.

Numa estrada no meio de um campo, fomos barrados por policiais militares georgianos que disseram estar procurando espiões. Saí do carro para falar com eles quando uma bateria de armas antimísseis começou a disparar na direção de um esquadrão de caças Su-25 da força aérea russa que aparecera no meio do céu azul e estava bombardeando tudo à vista.

Tenho a recordação de um Su-25 despencando do céu em chamas, boiando como uma folha ao vento até cair no chão.

A guerra durou apenas cinco dias e acabou com uma vitória arrasadora de Moscou. Mas o conflito foi humilhante para os serviços de inteligência russos, de muitas maneiras. Anos antes a Ucrânia havia vendido sofisticados sistemas de defesa antiaérea à Geórgia em segredo, sistemas esses que permitiram a defesa eficiente que eu testemunhei.

As autoridades russas se recusaram a acreditar que soldados georgianos soubessem operar os sistemas. Insistiram que a Geórgia devia ter recebido ajuda de tropas da Ucrânia.

Para Putin, que já descreveu russos e ucranianos como “um povo só”, foi um ato de traição sanguinária.
“Se confirmarmos que isso aconteceu, entraremos em contato apropriado com as pessoas que o fizeram”, ele disse pouco após a guerra.

O Partido das Regiões ucraniano, que apoia a Rússia e na época era a oposição, abriu uma investigação e divulgou os nomes de soldados ucranianos que teriam estado envolvidos. Um dos homens, descrito no relato como tendo “participado de ações militares”, fazia parte da lista de Smorodinov.

Dois outros nomes da lista de alvos aparecem em livros sobre a guerra escritos por historiadores russos.

Autoridades ucranianas confirmaram que um quarto homem da lista estava na Geórgia, mas não deram maiores detalhes. Um quinto homem da lista confirmou a mim que estava na Geórgia, mas negou qualquer envolvimento na guerra.

“Felizmente, esses cidadãos estão vivos”, me disse Knyazev, o chefe da polícia nacional. “Por enquanto, pelo menos.”

Mamchur foi o terceiro nome da lista, o único destacado em verde.

Smorodinov acha que será condenado pela morte de Mamchur. Ele espera ser trocado por um das dezenas de ucranianos encarcerados na Rússia. Mas a Rússia ainda não manifestou qualquer interesse numa troca.

“Ele não entende que ninguém precisa dele”, disse Knyazev. “Smorodinov já foi esquecido, descartado, é um cartucho vazio. Nosso inimigo tem uma reserva cheia de outros como ele, infelizmente.”

Tradução de Clara Allain

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