Um antigo produtor rural da região da Canastra, em Minas Gerais, tem o costume de dizer que queijeiro não tem tempo nem para morrer, “porque amanhã tem de fazer queijo”.
Queijos de leite cru, recém-ordenhado e empregado ainda morno no preparo dos laticínios, expressam com profundidade um modo de vida.
Ainda que possam partir de uma mesma receita (e há várias) e que respeitem processos seculares, resultam diferentes —e uma de suas virtudes está justamente nas irregularidades. É um alimento vivo, único, com o qual há de se aprender a lidar diariamente.
Feitos em pequena escala, em propriedades rurais familiares, são queijos intimamente identificados com a região. Têm a capacidade de traduzir, portanto, informações sobre sua origem e sua elaboração --as bactérias próprias de cada lugar, o clima, a pastagem da qual os animais se alimentam, o peso das mãos que os moldam.
Se submetidos a uma pressão mais delicada, por exemplo, queijos de massa mais dura tendem a apresentar mais olhaduras e, consequentemente, mais oxigênio, de tal sorte a criar condições favoráveis às bactérias desejáveis, que são aeróbicas e precisam de ar para se multiplicar e trabalhar na massa do queijo, sem limitar a intensificação de sabor e aroma.
Queijos feitos de leite pasteurizado não são melhores ou piores —são outro produto, sem a mágica capacidade de contar uma história e carregar consigo valores culturais.
Bem, quando o leite é aquecido e depois resfriado para eliminar bactérias indesejáveis e obedecer ao rígido controle sanitário no Brasil, cuja legislação força a imposição dos valores do mundo industrial para o artesanal e conduz milhares de produtores à ilegalidade, as bactérias lácticas benéficas, com o DNA da região de origem, também são extintas.
A reintrodução de fermento industrializado faz com que se repita um padrão —e este limita o trabalho do afiador.
Personagem ainda recente na cadeia queijeira do Brasil, ele se beneficia do oposto, da potência que massas com bactérias e fungos têm de transformar o queijo com o tempo sem o apartar de sua gênese.
Por meio desse processo trabalhoso de maturação, que exige dedicação, paciência e dinheiro, abre-se uma perspectiva enorme: no lugar de um produto, vários --e todos mantêm-se ligados às origens.
Diferentemente do que correntes mais radicais dizem, o queijo pasteurizado não é necessariamente um produto ruim. Há um caminho do meio.
Alguns pequenos produtores, aliás, fazem uma pasteurização lenta e branda --diferente da adotada pela indústria, rápida e violenta-- e a interpretam como uma maneira de agredir menos o leite e ferir menos seu sabor.
Parece contrassenso, porém, que a França, país onde tradicionalmente produtores enchem seus queijos de bactérias, fungos e leveduras mirando textura, aromas e sabores únicos, abra concessão para que o camembert seja feito de leite pasteurizado.
Do ponto de vista cultural, é vital que a origem de cada laticínio seja preservada no produto final e que não se crie uma concorrência desleal que massacre a produção artesanal.
Da perspectiva sensorial, o mais importante é preservar a riqueza e as particularidades desse laticínio. O dia em que um queijo for igual ao outro, nos restará apenas a indústria.
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