Descrição de chapéu The New York Times

Os pais são americanos, mas os EUA dizem que a filha deles não é

Bebê foi gerada por barriga de aluguel no exterior; casal homossexual aponta preconceito

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Sarah Mervosh
The New York Times

James Derek Mize é cidadão americano, nascido e criado nos Estados Unidos. Seu marido, que nasceu no Reino Unido, filho de mãe americana, também é cidadão americano.

Mas a filha bebê do casal não é, segundo o Departamento de Estado.

Ela nasceu fora do país com a ajuda de uma mãe de aluguel, com óvulo de uma doadora e espermatozoide de seu pai nascido no Reino Unido. Devido a essas circunstâncias a menina, segundo uma política implementada há décadas, não se qualificou para receber cidadania americana ao nascer, apesar de seus dois pais serem americanos.

James Derek Mize, left, and his husband, Jonathan Gregg, with their infant daughter Simone, who was born in England to a surrogate mother, in Decatur, Ga., May 15, 2019. Under a decades-old policy that has come under increasing scrutiny, Simone does not qualify for citizenship at birth, even though both her parents are American. (Johnathon Kelso/The New York Times)
James Derek Mize (esq) e seu marido, Jonathan Gregg, com a bebê do casal, Simone, em Decatur (Geórgia) - Johnathon Kelso - 15.mai/The New York Times

“É chocante”, disse Mize, 38. Ex-advogado, ele vive em Atlanta com seu marido, Jonathan Gregg, consultor de gestão. No mês passado eles receberam uma carta negando a cidadania à filha deles.

“Nós dois somos americanos”, disse Mize. “Somos casados. Achamos muito difícil acreditar que nossa filha não tenha o direito de viver em nosso país.”

O caso deles ilustra a complicação mais recente enfrentada por algumas famílias que recorrem à tecnologia reprodutiva assistida, como barriga de aluguel e fertilização in vitro, para ter filhos.

Durante anos essas técnicas provocaram discussões legais e éticas acirradas sobre as definições de paternidade e maternidade. A imigração e a cidadania representam a última fronteira dessas discussões.

O que está em jogo é uma política seguida pelo Departamento de Estado e baseada nas leis de imigração que requer que crianças nascidas no exterior tenham um vínculo biológico com pai ou mãe americana para poderem receber cidadania americana ao nascer.

James Derek Mize, left, and his husband, Jonathan Gregg, with their infant daughter Simone, who was born in England to a surrogate mother, in Decatur, Ga., May 15, 2019. Under a decades-old policy that has come under increasing scrutiny, Simone does not qualify for citizenship at birth, even though both her parents are American. (Johnathon Kelso/The New York Times)
James Derek Mize (esq) e seu marido, Jonathan Gregg, com a bebê do casal, Simone, nascida na Inglaterra por uma barriga de aluguel, em Decatur (Geórgia) - Johnathon Kelso - 15.mai/The New York Times

Isso geralmente não é problema quando os casais têm filhos da maneira tradicional, mas pode ser mais complicado quando apenas um dos cônjuges é o pai ou mãe genético.

A política vem sendo questionada nos últimos meses, com processos judiciais argumentando que o Departamento de Estado discrimina contra casais homossexuais e seus filhos, deixando de reconhecer seus casamentos.

Sob a política, o Departamento de Estado classifica certas crianças nascidas com a ajuda de tecnologia reprodutiva assistida como tendo nascido “fora dos laços matrimoniais”. Essa classificação, por sua vez, exige evidências mais fortes para comprovar a cidadania da criança, mesmo que os pais sejam legalmente casados.

Em uma instância, um casal gay formado por um israelense e um americano teve filhos gêmeos no Canadá, usando espermatozoides dos dois pais. O filho biológico do americano recebeu cidadania, mas seu irmão gêmeo, filho do pai israelense, não.

Em fevereiro um juiz federal decidiu em favor do casal, descrevendo como “extrema” a interpretação que o Departamento de Estado fez das leis de imigração. O Departamento está recorrendo da decisão.

O governo também é alvo de uma ação judicial semelhante movida por um casal de lésbicas em Londres, que não usaram barriga de aluguel. Uma delas é americana e a outra é italiana. Elas se revezaram para conceber e gestar seus dois filhos. Apenas o filho nascido da mãe americana recebeu cidadania americana.

Na semana passada um juiz federal autorizou a ação a seguir adiante, descrevendo a situação em que a família se encontra como “terrível” e “revoltante”.

James Derek Mize, left, and his husband, Jonathan Gregg, with their infant daughter Simone, who was born in England to a surrogate mother, in Decatur, Ga., May 15, 2019. Under a decades-old policy that has come under increasing scrutiny, Simone does not qualify for citizenship at birth, even though both her parents are American. (Johnathon Kelso/The New York Times)
James Derek Mize (esq) e seu marigo, Jonathan Gregg, com a filha do casal, Simone, em Decatur (Geórgia) - Johnathon Kelso/The New York Times

Embora a política seja anterior à administração Trump, os adversários do presidente estão chamando a atenção a ela. Na sexta-feira (17) a presidente da Câmara dos Deputados, a democrata Nancy Pelosi, a descreveu como “um ataque inescrupuloso e irracional às famílias americanas”.

Ressaltando que a política se aplica igualmente a casais heterossexuais e homossexuais, o Departamento de Estado se negou a comentar, citando os litígios pendentes.

O foco sobre um vínculo biológico com a criança data da Lei de Imigração e Nacionalidade de 1952, muito antes do advento da tecnologia reprodutiva moderna e do reconhecimento legal dos relacionamentos homossexuais.

Redigida inicialmente no final dos anos 1990, a política do Departamento de Estado em relação à tecnologia reprodutiva assistida é baseada numa interpretação dessa lei de 1952, segundo a qual as crianças “nascem” de seus pais e que menciona uma “relação de sangue” em certos casos.

As regras sobre a transmissão da cidadania visam assegurar que filhos nascidos no exterior tenham um vínculo suficiente com os Estados Unidos.

“A comprovação do vínculo biológico é necessária para que a rota da cidadania para pessoas nascidas no exterior não seja sujeita a fraudes por parte de pessoas que se dizem filhos de cidadãos americanos quando, na realidade, não o são”, disse John C. Eastman, membro sênior do Instituto Claremont, um think tank conservador da Califórnia.
 

Scott Titshaw, professor da Escola de Direito da Universidade Mercer, em Macon, na Geórgia, disse que a política reflete um descompasso entre as leis de imigração e da família.

“Ela contraria a visão atual da sociedade sobre o que constitui o matrimônio”, ele explicou. “E, o que provavelmente é mais importante, contraria a definição legal atual do que constitui paternidade e maternidade.”

Sob a administração Obama, o Departamento de Estado adaptou os requisitos de modo que a mãe também pudesse estabelecer um vínculo biológico com a criança pelo fato de dar à luz, além de fornecer o óvulo.

Isso permite que um casal de lésbicas possa ter um filho “dentro dos laços do matrimônio” se uma das mulheres fornece o óvulo e a outra carrega o feto em seu útero.

Mas essa possibilidade não existe para dois homens casados. “Um casal homossexual formado por dois homens não tem como conceber um filho do qual ambos sejam pais, segundo essa definição”, explicou Titshaw.

Em documentos judiciais, o Departamento de Estado disse que as autoridades precisam investigar cuidadosamente todos os casos de tecnologia reprodutiva assistida, “independentemente do sexo ou da orientação sexual dos pais legais”. E houve casos em que se pediram evidências biológicas para pais de sexos diferentes, segundo advogados que atuam nessa área.

Na prática, porém, a política tem impacto especial sobre casais formados por pessoas do mesmo sexo.
“Concretamente, o Departamento de Estado está dizendo que nosso casamento não vem ao caso”, comentou Adiel Kiviti, 40 anos, outro pai que teve a cidadania de seu filho posta em dúvida recentemente.

“Se vocês não vão nos dar os benefícios aos quais têm direito os casais casados, de que adiante nos dar o direito de nos casarmos?”

Adiel e seu marido, Roee Kiviti, nasceram em Israel e se naturalizaram americanos mais tarde. Os dois, cuja entrevista ao The Daily Beast na semana passada chamou atenção renovada à política do Departamento de Estado, têm dois filhos, ambos nascidos com a ajuda de uma mãe de aluguel no Canadá.

Quando pediram a cidadania americana para seu filho mais velho, Lev, em janeiro de 2017, ninguém lhes teria perguntado sobre a paternidade dele, e Lev recebeu a cidadania. Mas neste ano, quando nasceu a filha deles, Kessem, o Departamento de Estado pediu documentação.

Adiel, que é o pai genético de Kessem, ainda não havia passado cinco anos completos nos EUA quando a menina nasceu, disse a família. Eles estão discutindo como responder ao pedido.

“Para onde vão deportar nossa filha?”, perguntou Roee, jornalista de televisão. Seu marido dirige uma produtora de mídia em Washington. “Vivemos nos EUA.”

Mize, cuja filha está com 11 meses de idade e está aprendendo a andar, sente estresse igual. Ele contou que tem viajado entre os EUA e o Reino Unido com Simone, que tem visto de turista. Ele tem medo de atrapalhar o desenvolvimento dela em idade tão tenra e teme o que pode acontecer se o status legal dela não for resolvido.

“Nossa vida é aqui”, ele disse. “Nossos empregos estão aqui. Nossa filha não pode viver aqui, mas ela não tem mais ninguém que possa cuidar dela.”

Tradução de Clara Allain 

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